Resenha da obra “Livre para voar (Ziauddin Yousafzai e Louise Carpenter)

Ziauddin Yousafzai tem cinco irmãs e um irmão. A família, composta por sete filhos, orgulha-se dos dois filhos homens, valorizando e superestimando todas as conquistas deles, ao passo que as vozes e identidades femininas são caladas e ignoradas. Ziauddin manifesta desde criança uma dificuldade na fala, que resulta em uma gagueira. Ironicamente, ele e o irmão – ambos com dificuldades para falar – são mais escutados e reconhecidos pela família que as irmãs. Elas, sem nenhuma dificuldade para se comunicar, são invisibilizadas dentro da própria casa e na sociedade paquistanesa como um todo. Apesar de viver nesse contexto, Ziauddin tem uma visão de mundo diferenciada em meio à sociedade em que está inserido. Coloca-se em uma posição questionadora e inconformado com a falta de voz e de espaço atribuído às mulheres de sua família, como sua mãe, irmãs, tias etc. É um homem que acredita no poder do estudo e da dedicação, defendendo o conhecimento acessível a todos, sejam homens ou mulheres.

Quando criança, mesmo com toda a dificuldade na fala, decide participar de competições de oratória em sua escola – muito comuns na época. Outras crianças zombam dele, perguntando se ele iria mesmo participar do concurso. Ziauddin, com auto-confiança e determinação, surpreende a todos e é o primeiro colocado. Queria impressionar seu pai, quem o incentivava muito para que estudasse e se dedicasse. O sonho do pai era vê-lo formado em Medicina. Entretanto, esse era o sonho de seu pai, não o seu.

Nas sociedades patriarcais as crianças são vistas como propriedade dos pais. Ziauddin não queria ser propriedade de seu pai, queria ter suas próprias ideias, seu próprio caminho, querias ser livre para voar. Queria ser professor, profissão pouco valorizada e reconhecida, mas amada por ele. Era apaixonado pelo estudo e encantado pelas possibilidades que a educação poderia lhe trazer e trazer ao mundo. Sonhava em abrir uma escola, sonho que mais tarde pode realizar, abrindo uma escola de ensino fundamental no Vale do Swat onde mora com a esposa e os filhos.

Em sua infância, ele, o irmão e o pai comiam primeiro e ficavam com as melhores fatias de carne. Depois, a mãe e as irmãs sentavam-se à mesa, ficando com o que havia sobrado e também encarregando-se de todos os afazeres domésticos. Comer com mulheres na mesma mesa era proibitivo e até desrespeitoso. Ziauddin é responsável por iniciar o processo de mudança cultural dentro de sua família, derrubando valores e práticas patriarcais. Permitir e até incentivar que sua esposa fosse ao mercado, ao hospital ou a qualquer local desacompanhada de um homem era mal interpretado, mas aos poucos os familiares mais próximos foram se acostumando com a forma de agir e de se comportar dele e da esposa Toor Pekai.

O casal tem três filhos: Khushal, Atal e Malala. O casamento com Toor Pekai fora arranjado pelas famílias, mas o amor e admiração eram intrínsecos e ocorriam desde antes do arranjo do matrimônio. Malala, que crescera em um ambiente familiar menos repressivo, costumava brincar que também teria um casamento arranjado, mas – no caso – arranjado por ela mesma.

Durante as refeições, Ziauddin, Toor Pekai, Malala, Khushal e Atal sentavam-se juntos à mesa. Esses momentos eram de confraternização, não deveriam haver distinções entre os filhos homens, a filha mulher ou a esposa. Desde criança, incentivava Malala para que ela jamais se sentisse subestimada ou tivesse seus talentos e habilidades tolidos. Malala ama estudar e desde criança parece compreender a importância da escola. É a aluna mais dedicada de sua classe, tem os materiais sempre organizados, livros e cadernos na mais perfeita ordem e notas exemplares.

Apesar dos esforços, nem todas as ideias consideradas vanguardistas de Ziauddin conseguem ser implementadas. A Escola Khushal, que levava o nome de um dos seus filhos, foi aberta com turmas mistas, em que meninos e meninas estudavam juntos. A iniciativa, porém, foi reprovada pela maioria das famílias, que não consideravam adequado que suas filhas adolescentes convivessem com meninos, o que era interpretado como desrespeitoso contra a honra das garotas pela tradição pachton. Ziauddin insistiu e tentou manter as turmas mistas por um tempo, mas acaba cedendo às pressões, caso contrário, a escola iria à falência. Além disso, o fato das meninas estudarem, mesmo em turmas exclusivas para garotas , já era vanguardista em uma sociedade em que a norma era sequer as mulheres terem o direito de estudar. Uma história aparentemente inacreditável quando percebemos que essa é a realidade do Paquistão no início dos anos 2000.

Em 2007 o regime de talibanização começa a dominar o país. A rádio comandada pelo Talibã anuncia o fim da educação feminina a partir de janeiro de 2009. Nesse contexto, Malala – que já era uma liderança estudantil -, juntamente com outras garotas, dá prosseguimento aos estudos de forma extra-oficial na Escola dirigida por seu pai. As meninas precisam estudar de forma escondida. É cada vez mais perigoso que elas saiam na rua, ainda mais desacompanhadas, mesmo para ir à escola no pequeno vilarejo de Mingora. Em 2012, Malala já havia escrito um blog para a BBC sob um pseudônimo, contando sobre as restrições de seu país, a violência, os ataques armados e as infinitas dificuldades para estudar. Tornara-se uma liderança jovem nas escolas da região, sendo considerada como uma ameaça ao Talibã, que acaba atacando o ônibus onde ela estava e desferindo-lhe um tiro na cabeça. A menina escapa da morte e todos os detalhes da luta da família por sua sobrevivência são narrados pelo pai de forma emocionante na obra.

Ziauddin conta ainda que por pouco o filho Atal não estivera no mesmo ônibus no dia do ataque. Graças ao fato de ser considerado um menino agitado e desobediente que não queria viajar no ônibus escolar sentado, naquele dia o motorista havia o deixado para trás como forma de repreensão. No dia do atentado Malala é socorrida às pressas, recebe os primeiros socorros no Paquistão, mas dada a gravidade do quadro é transferida de helicóptero para o Reino Unido. A menina passa por uma cirurgia de emergência para remoção da bala em seu crânio e por meses de recuperação. O quadro é dramático, pois a família não sabia se ela sobreviveria e se ficaria com sequelas. Felizmente a garota sobrevive e a consequência mais grave que tem é um dos lados da face caído, sem movimentos, o que mais adiante é reparado através de nova cirurgia.

Malala, que já era reconhecida e premiada no Paquistão, pelo ativismo e luta pelo direito à educação feminina, em 2014 recebe o Prêmio Nobel da Paz. O pai narra no livro o impacto desse reconhecimento até então inimaginável, o sentimento de orgulho e a gratificação.

Relata ainda sua difícil adaptação à vida no Reino Unido, em Birmingham, onde a família passa a morar desde o atentado que atingiu Malala. Os três filhos passam a frequentar a escola em um novo contexto, deparando-se com uma nova cultura completamente diferente da sua. As escolas eram mistas, onde meninos e meninas conviviam com naturalidade. As meninas e mulheres andavam desacompanhadas nas ruas e não cobriam o rosto. Na perspectiva que a família estava habituada no Paquistão, as mulheres do Reino Unido andavam praticamente peladas. O choque cultural foi imenso, mesmo sendo a família Yousafzai considerada bastante avançada para seu tempo.

Ziauddin não entendia porque os filhos muitas vezes não o respondiam quando estavam no computador, parecendo ignorar sua autoridade de pai. Admite que sentia falta de alguns valores de autoridade e respeito de sua posição paterna como ocorria no Paquistão. Aos poucos compreende que os filhos estavam tornando-se cidadãos, críticos e reflexivos, que não necessariamente estavam apenas brincando ou jogando. Muitas vezes estavam fazendo a lição de casa, pesquisando temas importantes. Com o passar do tempo, foi acostumando-se ao novo contexto. Era uma realidade em que meninos e meninas estudavam juntos, não havia uma grande hierarquia entre pais e filhos, a obediência não ocorria como em seu país.

Foi um choque para Ziauddin e Toor Pekai quando Atal quis convidar oito amigos da escola para dormir em sua casa. Na prática, não dormiram, ficaram jogando videogame a noite toda. Mas no Paquistão esse tipo de convite não ocorria, pois se as crianças tinham família deveriam dormir em suas casas. Aos poucos Ziauddin e Toor Pekai aprendem também com os filhos sobre a cultura do país. Ziauddin, reticente no início com o hábito até então estranho para ele, admite que acaba gostando dos garotos, da energia e da alegria de todos trazida para sua casa. Se eram amigos de seu filho, seriam seus amigos também e seriam sempre bem-vindos.

Quanto à Malala, aos vinte e um anos de idade, já não precisava da companhia do pai e de cuidados para viajar pelo mundo, fazer conferências e participar de atividades do Fundo Malala internacional pela educação das mulheres. Ziauddin, que um dia também desejou sua própria liberdade em relação à sua família, espera que a filha possa voar, ser livre para construir seu caminho e suas escolhas. Fica feliz por saber que pode estar perto ou que ela irá lhe telefonar quando precisar de algo.

Uma obra que nos faz admirar a relação entre pais e filhos, o amor e a união de uma família em meio a tantas adversidades. Um livro comovente por suas passagens dramáticas, a luta constante pela sobrevivência, a luta pela propagação da vida, a luta pela educação, a busca pela igualdade de direitos e de oportunidades. Um livro emocionante e que nos faz crescer como leitores, como cidadãos e como seres humanos.

Já havia lido há pouco tempo a obra “Eu sou Malala” e para mim a história trazida por Ziauddin no que diz respeito à Malala não foi surpreendente, mas foi complementar em relação ao livro escrito pela própria garota. O olhar do pai, o desespero para salvar a vida da filha, o orgulho e a satisfação por ela se tornar quem se tornou, a alegria que transborda ao peito quando ela recebe o Prêmio Nobel da Paz, as conquistas diversas, são pontos trazidos de forma muito latente e intensa em “Livre para voar”. Pude conhecer mais a fundo Ziauddin e Toor Pekai. Fica evidente que as bases familiares foram fundamentais para propiciar à Malala os voos que alçou. Isso não retira ou desmerece o mérito de sua luta, mas é preciso observar que sua voz teve eco porque encontrou, dentro da própria casa, a força que precisava para romper com uma cultura retrógrada, patriarcal e subjugadora a qual as mulheres no Paquistão estão submetidas.

Posso dizer que tornei-me fã da família Yousafzai. Passo a admirar Malala profundamente por tudo que ela é e representa para a humanidade. Ziauddin, porque trouxe as bases e o apoio para que Malala se tornasse esse ícone que é hoje. Ele que, em meio a suas próprias contradições, incentivou a filha para que alçasse voos longos e libertadores. Toor Pekai, por ser uma mulher sábia e batalhadora, que mesmo sem o conhecimento formal ou os diplomas escolares e acadêmicos, trouxe luz e sabedoria à família. “Livre para voar” é uma lição de vida, generosidade e esperança para um mundo que necessita de forma urgente de educação e amor.

Seminário de Educação Inclusiva no Ensino Médio e Técnico

Estão abertas as inscrições para o 2º Sedinetec – Seminário de Educação Inclusiva no Ensino Médio e Técnico -, que ocorrerá entre os dias 29 e 30 de maio de 2019 no IFSUL, campus Sapucaia do Sul. O objetivo principal do evento é a troca de experiências e conhecimento sobre a educação inclusiva.

É possível se inscrever para apresentar um relato de experiência ou pesquisa na educação inclusiva, especialmente no ensino médio e profissional, nas modalidades comunicações oral ou pôster. A partir deste ano, haverá a publicação dos trabalhos apresentados. Também é possível se inscrever apenas como ouvinte do evento, com direito a certificação.
O evento é gratuito e aberto à comunidade externa, e a presença de todas e todos é muito bem-vinda!

O site para maiores informações, programação e inscrições é:
https://www.even3.com.br/sedinetec/

Dica de leitura: “Becos da Memória” (Conceição Evaristo)

Uma literatura dotada de intenso realismo e profundidade. A narrativa de Conceição Evaristo parece detalhar fotograficamente o universo da favela e das personagens da obra. A leitura quase me permitiu escutar o cantarolar de Vó Rita, seu riso fácil, sentir seus braços gordos e fartos em um gostoso abraço cheio de afeto; desfrutar da companhia de Bondade, que, de visita em visita, colhia sorrisos por onde passava; escutar a vontade de resistir e os ensinamentos de Negro Alírio. São inúmeras as histórias de vida de Maria Nova, Maria Velha, Dora, Ditinha, Jorge Balalaica, Cidinha Cidoca, entre tantos outros personagens – alguns sequer sem nome, tão insignificantes quanto suas próprias existências.

São histórias que se encontram e desencontram por entre os becos da favela, que se passam ora na torneira de cima, ora na torneira de baixo, ora no barraco de um, ora no barraco de outro. São crônicas que, somadas, compõem o romance, como se cada episódio fosse um dos becos da favela. A soma de todos os relatos cotidianos, no labirinto de pobreza, misérias e desesperanças, estruturam o romance, formando o emaranhado mapa da favela.

O posfácio “Costurando uma colcha de memórias”, de Maria Nazareth Soares Fonseca, observa que a obra permite a escuta do silêncio imposto aos marginalizados através de uma história narrada por suas próprias vozes. O livro expõe as vidas subterrâneas de homens e mulheres na luta contra a fome, bem como as vidas de crianças que precisam crescer precocemente para ajudar as famílias. Entre o barraco e o barranco, Conceição Evaristo nos permite conhecer os pedaços e fragmentos de vidas mal vividas.

Narrativas envolvendo diferentes núcleos familiares apresentam todas o mesmo pano de fundo: o “desfavelamento”, ou seja, processo que pouco a pouco expurga os moradores dali. Em nome da urbanização, do progresso e de uma infinidade de outras questões, a transferência deles ocorria como a de animais embolados na boleia de caminhões. Eram levados para rincões distantes. Cada família ia para um canto diferente, tentar a própria sorte, em um mundo sem esperança de uma realidade melhor.

As autoridades ofereciam dinheiro ou material de construção e um terreno para que as famílias deixassem o local. Não poderiam demorar para ir embora. Havia pressa pela desocupação da área. O caminhão viria recolher as trochas com as poucas roupas, as telhas, os papelões, os pinicos, as caixas, os fogareiros. A favela era a única referência para a maioria deles, que moraram ali a vida inteira, trabalhando nos arredores, tendo nos limites do morro a maior perspectiva vislumbrada para as próprias vidas.

Sem educação, sem escola, sem comida, sem roupas, sem cobertores, sem cama, sem água encanada, sem dignidade, sem trabalho, sem acreditar em nada, precisavam ter forças para recomeçar em outro local. Uma nova vida em um local muito mais distante, sem referências, sem nenhum suporte, sem nenhum rumo. Então recomeçar o quê?

Um livro que me fez resgatar a reflexão sobre as diversas formas de se contar e de se apresentar as histórias da humanidade, de um povoado, país ou continente. A narrativa que nos é contadas sobre guerras, invasões, colonizações, dominações, dizimações e açoitamentos obedece invariavelmente a lógica “oficial” dos livros didáticos de História que jamais problematizam a perspectiva dos “vencidos” ou dos dominados. No caso dos índios e povos que habitavam a América Latina antes da chegada dos europeus, por exemplo, sempre escutamos a perspectiva que apresenta a América como “colonizada” pelos portugueses ou espanhóis. E qual a história dos que ali viviam? Quais suas crenças, tradições, comportamentos? Como se sentiram com a dominação dos europeus? Como foram tratados? Quais as implicações disso? Por que a história é contada apenas a partir da chegada dos ditos colonizadores?

“Becos da Memória” revela a aproximação – e por que não a equivalência – entre a senzala e a favela. Agora homens ditos livres. Mas livres para quê? De que maneira? O que a vida lhes poderia permitir? A maioria dos homens e mulheres insistiam em viver, não se entregavam fácil. Alguns, porém, preferiam abreviar a dor e terminar mais rapidamente com aquela vida sofrida. A dita “liberdade” não lhes trazia qualquer escolha ou possibilidade de mudança. O desfavelamento não lhes trazia qualquer melhoria, qualquer redução no sofrimento. Pelo contrário, todos os laços são rompidos, o afeto construído é quebrado, a rede de apoio, as estratégias de sobrevivência, o companheirismo de todas as manhãs das lavadeiras, as brincadeiras das crianças, nada disso persiste.

Os tratores, que abrem clareiras e aplainam o terreno em nome do desenvolvimento, são o símbolo da morte, da exclusão, da miséria, do apagamento do único espaço que consideravam seu: a favela. Dia após dia, as máquinas seguem violentamente aplainando o terreno, destruindo os becos, retirando as características do terreno acidentado. Os “bichos pesadões”, com o barulho ensurdecedor de amargura, aplainam a terra que antes sustentava casebres e histórias de tanta gente. Semana após semana, mês após mês, a favela vai ficando menor, todos vão indo embora. Alguns meninos morreram brincando em volta dos tratores. Alguns adultos morreram de desgosto, de aflição, de angústia por ter de ir embora e não ter um destino. Enterrados como indigentes, não havia dinheiro ou dignidade sequer para a morte.

Mas o progresso… O progresso…. O desenvolvimento… O desenvolvimento… É preciso terminar com as favelas. É preciso retirá-las dos olhos de quem não pode vê-las, mandar aquela gente pobre, preta, suja e fedorenta embora. Tinham que sair dali, do meio da área nobre da cidade. Tudo estaria resolvido. E seguem os tratores patrolando o terreno e a subsistência daqueles que ali viviam. Segue o barulho da violência e da agressão que apenas os moradores dali escutam. O campinho da pelada do final de semana não existe mais, os barracos não existem mais, o boteco da pinga também não existe mais, as torneiras foram desativadas e arrancadas, o sopro de vida e de resistência diminui a cada instante. As despedidas são pesadas e tristes. Cada um que vai embora é uma fagulha de esperança que se apaga.

O posfácio “A força das palavras, da memória e da narrativa”, de Simone Pereira Schmidt, evidencia que a obra nos permite aprender um pouco do que é ser negro no Brasil e do que significa ser branco em uma sociedade racista. O trabalho de sol a sol das lavadeiras, em constante esforço pela sobrevivência, é comparado ao trabalho nas senzalas. A geografia dos becos remete novamente à escravidão. O passado colonial e o presente com a herança colonial se fundem numa continuidade sem fim. O regime escravocrata, agora chamado de liberdade, impõe as mesmas regras e condições àquelas pessoas. A saída da favela para outro local pretensamente mais “adequado”, também não representa qualquer mudança real.

Conceição Evaristo, uma autora que até então eu desconhecia, denuncia toda essa realidade, em uma literatura nada ficcional. Ao conhecer a obra, não tive dúvidas de que estava diante de uma das maiores escritoras de literatura brasileira e mundial de nosso tempo, que passo a admirar e respeitar profundamente, a qual recomendo a todos.

Dica de leitura: Eu sou Malala (Malala Yousafzai)

Um livro que descortina uma cultura que naturaliza o fato das mulheres não votarem, não estudarem, não saberem ler ou escrever. O nascimento de um filho homem é amplamente comemorado, com direito a presentes e festividades. Com o nascimento de uma menina, as famílias se recolhem e sequer se orgulham. “Eu sou Malala” é a autobiografia de Malala Yousafzai, uma menina paquistanesa de 11 anos que tem coragem para questionar hábitos e crenças de sua sociedade. Moradora de Mingora, no Vale do Swat, região tribal no interior do Paquistão, localidade desprovida de uma estrutura básica de acesso à saúde, sem hospitais, energia elétrica e água encanada. A jovem vive um mundo iluminado por lamparinas de querosene, mas mesmo diante de todas as adversidades busca o universo das luzes e o conhecimento presente nos livros, na escola e por onde estiver.

Desde criança as brincadeiras de ser professora e de estar na escola chamam a atenção dos adultos. O pai Ziauddin Yousafzai, professor e defensor do acesso à educação para todos, luta incessantemente pela liberdade de estudar da filha. O sonho de abrir uma escola no Vale do Swat é buscado com afinco, iniciando com dois ou três alunos e, apesar das restrições e perseguições políticas, consegue inaugurar e manter a escola com turmas para meninos e turmas para meninas. Pai e filha tornam-se uma dupla de lideranças e ativistas nos questionamentos e denúncias de violações de direitos. Malala relata no livro o orgulho que sente ao colocar o uniforme para ir à escola. É a melhor aluna de sua turma, adora ler, estudar, fazer cálculos. Muito dedicada e interessada por todas as matérias. Física é uma das que considera mais difíceis, mas gosta do desafio de compreender os fenômenos da natureza, os cálculos, os problemas e as equações.

Um dos trechos que chama atenção no início da obra é sobre a falta completa de saneamento básico, em plenos anos 2000. O lixo das casas é levado pelos próprios moradores a terrenos baldios que se transformam em grandes lixões a céu aberto, com muitos ratos, cheiro ruim e corvos. Um dia a mãe pede que Malala leve o lixo até lá. A menina sente medo por causa dos bichos, mas obedece. Ao entrar no terreno, é surpreendida por uma criança de seu tamanho que pula em sua frente, saindo do meio de entulhos e materiais que separa no lixo. É uma menina que regula com sua idade, tem cabelos compridos e o rosto todo sujo. Olha no entorno e vê outras crianças também no meio do lixo trabalhando na separação. Malala tenta conversar, mas elas saem correndo e seguem no árduo e insalubre trabalho respirando aquele odor que dá ânsia de vômito.

Ela chega em casa e afirma que irá ajudar aquelas crianças. A cena lhe cortou o coração. Ziauddin, na época já proprietário de uma escola junto com outro sócio, dá bolsas para crianças carentes e famílias que não podem pagar. A bolsa, entretanto, não é suficiente. Muitas vezes a mãe de Malala abre as portas da própria casa para que antes da escola elas tomem café da manhã. Caso contrário, iam para a escola, mas com fome não aprendem nada. O fato da escola dar bolsas para quem não pode pagar começou a afastar as famílias mais abastadas, pois os pais não querem que seus filhos estudem com os filhos de seus empregados.

Uma sociedade extremamente excludente e com discrepâncias de toda ordem. Quanto ao pedido da filha para que as crianças do lixão estudassem também, Ziauddin – consciente da realidade local – explica à filha que se aquelas crianças fossem tiradas de lá para estudar estariam levando diversos outros membros da família delas a passarem fome, pois todos dependiam daquele trabalho para terem o mínimo para comer no final do dia. A imagem daquela menina com o rosto nas cores do lixo não sai de sua mente. É em prol delas e de outras crianças de seu país que Malala decide dedicar sua existência.

Ao mesmo tempo em que a escola aberta por Zeauddin começa a prosperar o regime Talibã passa a tomar conta do Paquistão, atingindo num primeiro momento apenas os grandes centros em Islamabad, mas rapidamente chegando também ao Vale do Swat. Lojas que vendem livros, CDs e DVDs começam a ser fechadas e apresentadas como algo do “demônio”. Os Talibãs começam a bloquear pontes, fazer barreiras em estradas, fiscalizar todo tipo de material impresso, destruir computadores e aparelhos de televisão, bloquear a rede de telefonia, fechar emissoras, impedir meninas e mulheres de circularem sozinhas e principalmente de frequentar a escola. Na obra, Malala conta detalhes do movimento de resistência liderado por ela e o pai, fala sobre o sonho de ver todas as meninas na escola. Aos 13 anos escreve um blog sob pseudônimo para a BBC, ganhando notoriedade e reconhecimento mundial. Seu nome torna-se um movimento global pelo direito à educação a crianças do mundo inteiro, independentemente de sexo, credo ou religião.

A protagonista reafirma em diversas passagens do livro o seu amor e devoção ao islamismo, destacando que em nenhum momento do Alcorão está escrito que as mulheres não devem estudar ou que devem ser submissas aos homens, evidenciando distorções e interpretações errôneas justificadas pelo dogma da religião. A autora relata que as famílias pachtons sempre foram um povo hospitaleiro, de paz e com valores do bem, mas que em função do regime Talibã a imagem mostrada para o mundo é a de que os habitantes da região seriam violentos e desumanos. O Vale do Swat, até antes da chegada dos Talibãs, é amplamente visitado por turistas, que admiram a natureza e a gastronomia local, mas os visitantes desaparecem com medo da violência e da repressão.

Em 2012, mesmo após o suposto fim do regime Talibã – que teria persistido entre 2003 e 2009 – muitas pessoas seguem sendo perseguidas. Antes o regime atacava a população indiscriminadamente, a partir de então passou a mirar alvos específicos, sendo perseguidos apenas aqueles que questionassem o sistema. Em 9 de outubro daquele ano Malala é baleada na cabeça dentro do ônibus escolar na volta para casa, juntamente com outras meninas de sua escola. A garota passa por uma cirurgia no crânio, estando a beira da morte. O ataque gera uma grande comoção na comunidade internacional. Votos por sua recuperação ganham as páginas de revistas e jornais. Malala recebe o apoio de importantes ativistas pelos direitos humanos, bem como o reconhecimento de diversos chefes de Estado pela luta que desenvolve em prol da educação. No dia do ataque é atendida primeiramente em um hospital militar no Paquistão, passando por três hospitais até que é transferida de helicóptero para Birmingham, no Reino Unido, onde fica internada por 3 meses até receber alta.

Em 2013, ela comemora seu aniversário de 16 anos discursando na Assembleia da Juventude da Organização das Nações Unidas, em Nova Iorque. Entre inúmeros prêmios e reconhecimentos, Malala é agraciada com o Prêmio Nobel da Paz (2014), sendo a pessoa mais jovem a recebê-lo. Trata-se da narrativa de uma menina, com a maturidade de uma adulta, os dilemas de uma adolescente e um impressionante amadurecimento precoce.

No início do livro a leitura parece demorar a “engrenar”, apresentando pouca fluidez e exigindo uma persistência inicial do leitor. Mas, passando alguns capítulos introdutórios, pude entrar no livro e devorar suas passagens. O estranhamento inicial pode ocorrer em função da obra ter a naturalidade e a emoção de uma adolescente sem o hábito da escrita e completamente imersa em suas angústias e vivências em um contexto difícil ou ainda em função da tradução desses relatos do idioma original para o português – o que de forma alguma compromete a qualidade e o impacto da obra.

A partir da obra pude aprender um pouco sobre a cultura islâmica, história, geografia, religião e principalmente sobre humanidade – ou a falta dela. O mais impressionante foi tomar conhecimento acerca de como ocorre a relação cotidiana entre a população paquistanesa e o Talibã pela ótica de uma adolescente, que tenta seguir sua vida, fazer provas, passar de ano, ter amigas, se divertir e garantir as melhores notas da turma. Malala precisa se preocupar com o que vestir, com o volume de sua voz, com os caminhos a traçar na ida e na volta para a escola, com a segurança dela e de sua família, com os homens-bomba, com o volume da televisão para que os talibãs não descubram o aparelho proibido na residência, além de conviver com a sensação de estar sendo seguida e vigiada o tempo todo.

A persistência e determinação de Malala são incessantes e incansáveis. Uma lição de vida para qualquer ser humano. O mundo inteiro deveria refletir sobre os relatos trazidos na obra. Fico me questionando como, em pleno século XXI, algumas regiões não contem com energia elétrica, as escolas ainda segreguem meninos e meninas em turmas separadas como única forma de acesso à educação, a mulher seja amplamente submissa, entre uma infinidade de situações alarmantes. Tanto se fala e se estuda sobre a globalização, as sociedades em rede, o poder da internet e os acontecimentos locais com impacto mundial, mas fico me perguntando até que ponto esse discurso é real ou apenas falacioso e virtual, pois o fato é que as atrocidades e violações de direitos seguem ocorrendo e sendo noticiadas pela mídia. Fico pensando como cada indivíduo ao redor do mundo pode dormir e acordar tranquilamente todos os dias tendo acesso à informação e consciência de que isso está ocorrendo com seus semelhantes ao redor do Planeta. Seguimos noticiando e nos informando, mas sem conseguir mudar a realidade.

Agora o Paquistão está envolvido em outros conflitos, disputando a região da Caxemira com a Índia. Outros países ao redor do mundo estão em guerra. Aqui no Brasil diversas guerras não declaradas são travadas todos os dias. O que aprendemos na prática desde o tiro que quase matou Malala? O que aprendemos a partir de tiros que já mataram tantos inocentes? Será que estamos em um caminho de mudança? Fico angustiada e apreensiva. Gostaria de dizer que sim, que o mundo está caminhando para algo melhor, mas não tenho convicção nessa resposta. O que me resta ainda é a esperança. Um excelente livro. Boa leitura!

Por Mariana Soares