Dica de leitura: A sútil arte de ligar o foda-se (Mark Manson)

Confesso que sempre tive um certo preconceito com livros de autoajuda e que nunca procurei esse tipo de literatura. Entretanto, ouvi falar bem deste livro por pessoas diferentes e em diferentes contextos. Resolvi dar uma chance. Admito que iniciei a leitura sem nenhuma expectativa positiva em relação ao mesmo, mas pensando que até para não gostar de algo eu precisava conhecer. Li o livro e me surpreendi positivamente. Muitos aspectos trazidos na obra fizeram bastante sentido para mim e foram ao encontro de situações e dilemas enfrentados no meu atual momento. O próprio título do livro me fazia imaginar que fosse um emaranhado de besteiras e uma leitura meramente divertida, mas o conteúdo é profundo e analítico, trazendo reflexões psicológicas importantes e diversos exemplos práticos de situações cotidianas enfrentadas pelo autor e que vão ao encontro de situações corriqueiras vivenciadas por qualquer pessoa. Temas pertinentes e muitas conclusões ou caminhos que já havia encontrado a partir de consultas na minha terapia foram evidenciados na obra.

Mark Manson conceitua a vida como tudo aquilo que fizermos no curto intervalo entre o momento presente e o dia de nossa morte. Não há nada na vida tão certo como a morte. E justamente por isso é que devemos fazer escolhas sobre com quais problemas queremos conviver, com quais fardos queremos acordar e ir dormir, quais estresses queremos ter em nossas mentes. Simplesmente se valorizarmos todos os aspectos negativos e deixarmos que qualquer coisa ruim torne-se um problema presente para nós, não sobrará tempo para as coisas boas e para as alegrias.

É nesse sentido que o autor defende o aprendizado interno sobre a sútil arte de ligar o foda-se. Se decidimos que a busca pela felicidade amorosa ou o emprego dos sonhos são desafios que valem a pena para nós, teremos que ao mesmo tempo escolher quais serão os temas pelos quais ligaremos o foda-se. Será que se estressar com o colega que não te respondeu ao bom dia valerá a pena? Será que ficar horas reclamando do trânsito valerá a pena? Será que brigar com seu marido porque comprou uma banana muito verde ou deixou a pasta de dente aberta valerá a pena? Será que ficar indignado com a moça do caixa que te deu 30 centavos a menos de troco valerá a pena? Será que estragar todo o seu dia porque alguém cortou a sua frente no trânsito valerá a pena?

O título mostra ao leitor que é seu livre arbítrio escolher os sofrimentos e preocupações pelos quais irá passar, as batalhas que irá comprar, os dilemas que valerão a pena ser enfrentados. Os problemas fazem parte da vida e é preciso saber viver com eles. Tudo depende do tamanho e da dimensão que atribuímos a eles. A vida é uma eterna escolha de quais problemas queremos problematizar e quais preferimos ligar o foda-se. Se passarmos a valorizar todas as adversidades, simplesmente não conseguiremos tempo e energias para vivenciar os momentos felizes.

Feita a escolha sobre o que é importante para você, ainda assim, essas metas ou objetivos virão carregados de dificuldades, transtornos e adversidades. A busca pela felicidade na vida amorosa, por exemplo, traz uma árdua trajetória até o encontro de seu “par perfeito”. Será necessário estar disposto a jogar o jogo do amor, em situações que ora são prazerosas, ora são fruto de angústia e insegurança. Será necessário sair com pessoas diferentes, conhecer as características que o agradam e que não o agradam em alguém, marcar encontro, ir ao encontro da pessoa, um dia levar o bolo, outro dia dar o bolo, esperar o telefonema que não chega, ligar para a pessoa, se expor, investir na relação, cultivar a confiança do outro. E tudo isso correndo o risco de dar errado. Passar por essa infinidade de situações e conflitos em busca da dita felicidade e do encontro da sonhada “pessoa certa” é um risco que poderá dar certo ou poderá levar à frustração. Supondo que toda sua busca tenha sido um sucesso e você finalmente está ao lado de quem você ama, agora os problemas recém começaram. A partir desse momento você enfrentará os desafios de vivenciar o relacionamento, a convivência diária, as discordâncias, as diferentes visões de mundo, as implicâncias com pequenas coisas etc.

O mesmo vale para a busca do emprego dos sonhos. Você precisa estar disposto a distribuir currículos, fazer contatos, participar de processos seletivos muitas vezes desgastantes, ter a formação certa que o torne competitivo na sua área de formação. Vai precisar ir a diversas entrevistas, responder perguntas, apresentar-se, vender sua imagem pessoal e convencer os demais de que a vaga deve ser sua. Inevitavelmente irá criar expectativas, algumas poderão dar certo, outras não. Terá que falar mais de um idioma, caso contrário seu currículo já estará para trás dos demais. Terá que ter uma infinidade de experiências prévias e cursos específicos para que alguém o julgue capaz de ocupar determinadas posições. Enfim, tudo isso para, com muita sorte, um dia você alcançar a tão sonhada vaga dos seus sonhos. E quando isso ocorrer, novos problemas e desafios invariavelmente estarão diante de você: manter seu emprego, mostrar-se capaz, ter um bom relacionamento interpessoal, apresentar resultados satisfatórios, ter um bom jogo de cintura com os colegas, bom entrosamento no ambiente profissional etc.

Um problema aparentemente está resolvido e uma infinidade de outros automaticamente estão diante de você para serem enfrentados na sequencia, fazendo parte da cadência natural da vida. O jogo entre momentos felizes e a constância de problemas fazem parte da existência e da condição humana. Não temos como escapar dessa realidade, mas temos como aprender a lidar melhor com ela. O primeiro passo é aceitar que problemas são parte da vida e que não somos obrigados a estar sempre felizes e radiantes de satisfação. A felicidade ininterrupta não é verdadeira, só traz momentos de euforia e pouca realização. A busca obsessiva pela felicidade só traz infelicidade. A incessante busca pelo sucesso só traz insucesso. A plenitude de coisas boas é utópica e não há nada de errado com isso.

Compreender nossos limites é entender que eventualmente estaremos tristes ou passando por dificuldades e que isso faz parte. Fracassos e coisas ruins são inerentes ao que chamamos de vida. Dificuldades nos fazem crescer, nos trazem propósitos. Se tivéssemos tudo de forma fácil, o sentido da própria existência estaria acabado. O que estaríamos fazendo aqui? Os problemas e adversidades acabam tornando-se a mola propulsora do nosso desenvolvimento.

O autor nos instiga a termos autoconsciência sobre os próprios valores, bem como a termos clareza e discernimento sobre o que julgamos certo ou errado. Quanto mais a fundo formos no sentido de desbravar as camadas da autoconsciência, maior capacidade teremos de modificar e questionar nossas próprias crenças e valores. Qualquer mudança nesse sentido não é tarefa fácil, mas trata-se de um dos grandes pilares de nosso desenvolvimento.

A diferença entre culpa e responsabilidade é outro ponto bastante esclarecedor trazido na obra. Uma criança pode ser deixada abandonada na porta de sua casa e isso não é culpa sua. Mas é, sim, responsabilidade sua o que você fará com a criança. Você poderá ignorá-la e deixá-la na rua, abriga-la até que a situação se resolva, tentar adotá-la, chamar as autoridades, ligar para o Conselho Tutelar, enfim, uma infinidade de possibilidades. O fato é que coisas ruins acontecem o tempo todo e na maioria das vezes podem não ser culpa nossa. Mas é nossa responsabilidade lidar com elas. Em outra situação, como na busca por um emprego, pode não ser culpa o fato da pessoa ter uma origem humilde e não ter tido oportunidade de estudar. Mas, ao perceber essa realidade, é responsabilidade da pessoa lidar com a situação e verificar como pretende se posicionar diante disso. Poderá se conformar com a situação, não fazer nada e passar a vida toda reclamando das injustiças e falta de oportunidades, poderá buscar um supletivo para terminar os estudos mais rápido, poderá buscar o emprego que propicie conciliar com os horários das aulas etc. A clareza entre a diferença de culpa e responsabilidade pode mudar a perspectiva com que encaramos a vida.

Por fim, retomando o conceito inicial de vida, Mark Manson aborda a fragilidade e a finitude de nossa existência. Quando nos damos conta de que tudo é passageiro e que estresse por coisas insignificantes não nos acrescentam em nada, passaremos a encarar a vida de outra maneira. Literalmente sentado a beira de um abismo de uma linda paisagem da África, o autor medita sobre os significados mais profundos da vida e sobre a linha tênue que separa a vida e a morte. Segundo ele, todos nós deveríamos ter cada vez mais presente o fato de que a morte está cada dia mais perto, pois isso faria com que aproveitássemos e vivêssemos muito mais e melhor a vida. Se todos tiverem presente o fato de que, em pouco tempo, estaremos mortos, conseguiríamos relativizar picuinhas, futilidades e superficialidades com que nos preocupamos todos os dias. Mesmo os grandes problemas poderiam ser mais leves, pois com a consciência presente de que nosso corpo físico – independente da crença e religião de cada um – irá terminar, todos os seres humanos poderiam viver de forma mais harmoniosa e amorosa.

A linha que separa a vida e a morte para Manson, naquele momento na beira do abismo, é mínima. Um deslise qualquer, uma vertigem, um tropeço, qualquer ato em falso, poderia derrubá-lo lá embaixo e acabar com tudo. Em questão de segundos e ele poderia não estar mais vivo. Acredito que um exemplo tão concreto como esse pode ilustrar muito bem a mensagem principal do livro e nos fazer refletir de verdade sobre o que fazemos com nossa vida. Você não precisa de fato sentar-se a beira de um precipício para entender isso, mas o simples exercício de trazer essa fragilidade de forma consciente pode nos ajudar a transformar nossa existência e do mundo que nos cerca.

Ligar o foda-se para o que não importa e valorizar cada dia como se fosse único deveriam ser premissas de vida para qualquer ser humano, pois não sabemos a qual distância estamos do abismo da morte ou quando ele aparecerá em nossa frente. Ao contrário do exemplo de Manson em que foi possível evita-la, quando a morte chegar não poderemos pedir para nos devolver o tempo perdido. Por isso, viva, viva e viva, jogando fora o que não importa. Nenhum dos problemas e estresses irão com você quando o abismo chegar. Uma leitura que de fato recomendo.

Resenha da obra “Ser André Werkhausen Boone”

Eu considero que um livro é bom quando chego ao ponto de não querer terminá-lo para prorrogar o tempo em contato com a obra. Se acabo optando por e interromper a leitura para sobrarem páginas para o dia seguinte é porque o volume é realmente incrível. Foi assim com a obra “Ser André Werkhausen Boone” (Editora Amstad, Nova Petrópolis, 2018), de autoria do próprio André Werkhausen Boone. O André é um dos autores da nossa coletânea Histórias de Baixa Visão, a qual tive a alegria de organizar. Participou de nossa primeira edição (2017) e da 2ª edição – Revista e Ampliada (2018). Sempre conversamos por whatsapp e trocávamos ideias literárias. Eu sabia que ele estava escrevendo um livro próprio contando sua trajetória e relação com a deficiência visual. Tinha certeza que seria uma obra importante e que acrescentaria muito nesse campo. Entretanto, mesmo já tendo conversado bastante com o ele e até participado de alguns eventos e lançamentos do nosso livro juntos, não conhecia detalhes de suas vivências que só foram possíveis compreender a partir da leitura da obra completa.

André era um jovem considerado “normal”, dentro do senso comum do que seria uma pessoa sem deficiência. Durante o Ensino Médio em Nova Petrópolis, cidade pacata da serra gaúcha, começa a sentir sintomas de dores no joelho que não passavam e acabam se espalhando pelo corpo todo. Sem entender o que acontecia consigo, buscando explicações de médico em médico, de hospital em hospital, dependendo de consultas e exames que demoravam e respostas que não vinham, vivenciou todos os problemas de acesso a saúde pública em uma pequena cidade do interior. Foi ao lado da mãe, dona Silvani – uma mulher batalhadora, que ganhou todo o meu respeito e admiração a partir da obra – que percorreu hospitais de Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre em busca de respostas enquanto seu quadro de saúde só se agravava.

A partir da leitura do livro você vai entendendo, junto com as memórias do autor, como André sai de uma condição de tetraplegia, sem controle de braços e pernas, sem sensibilidade e força nos membros, sem controle das necessidades fisiológicas e uma infinidade de medos e incertezas – inclusive sobre a continuidade da própria vida – para a condição de “somente cego”. Tornar-se uma pessoa cega, mas caminhando, escutando, se deslocando, sem alterações cognitivas, acaba configurando-se como uma importante conquista nesse contexto.

Reconstruindo e ressignificando toda sua existência, André – já na condição de cego e no auge de sua adolescência – precisa se afastar da escola para passar pela reabilitação. Teria que aprender a fazer as mesmas coisas que fazia antes, agora sem a visão. Muitos tropeços e dificuldades no caminho. Problemas de falta de acessibilidade de toda ordem: no transporte público, calçadas, sinaleiras, orelhões e objetos aéreos pela cidade atrapalhavam sua locomoção e autonomia. Com pitadas de bom humor e sem nunca desistir, o autor cria um novo significado para a palavra “testar”. Segundo ele, significaria a partir de então “colidir com a testa”.

A leitura de “Ser André Werkhausen Boone” é um convite a se repensar nossos posicionamentos diante das adversidades da vida. A superação de questões graves de saúde, a crença em soluções mesmo quando os médicos diziam que nada poderia ser feito, a vitória diante de abalos emocionais profundos, contornando a depressão e a ansiedade. A autodeterminação e jamais a resignação. A luta pela vida em todas as suas dimensões e com toda a intensidade possível e impossível. Passei a admirar ainda mais o autor e indico a leitura da obra para todos.

Do ponto de vista literário, o livro divide-se em capítulos curtos, bem estruturados, que terminam deixando gosto de quero mais. A continuidade está no capítulo seguinte e assim sucessivamente, de forma que a leitura de mais de 200 páginas é muito rápida e fluida. Além do aprendizado enquanto ser humano, o autor traz um retrato muito fiel da realidade de sua cidade, das rotinas e problemas do interior, de sua escola e de seu bairro Pousada da Neve. Aprendi mais sobre o cotidiano dos “neopetropolitanos”, nome até então desconhecido por mim para designar os nativos dessa encantadora cidade. Conhecia Nova Petrópolis apenas pelo ponto de vista turístico, mas nunca tinha tido a perspectiva de quem mora e vivencia o local para além das atrações destinadas a visitantes, bem como das comidas e bebidas convidativas do inverno gaúcho.

O contraste entre três cidades, de pequeno, médio e grande porte – no caso Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre – é um ponto amplamente explorado na obra pelo olhar apurado e atento do autor, que – em paralelo a sua história e drama pessoal retrata o contexto social em que vivia e apresenta o universo de sua família e das dificuldades enfrentadas por todos. Dona Silvani, trabalhadora de uma fábrica de calçados, precisava o acompanhar nas viagens e médicos, sem abandonar o emprego. Foi o caminho até o trabalho da mãe sozinho uma das grandes vitórias na busca por recuperar sua autonomia para o deslocamento após a perda da visão. André, que já conhecia as localidades quando enxergava, redescobre seus espaços, caminhos, sons, cheiros e movimentações após tornar-se uma pessoa cega.

A vida tranquila, as árvores frutíferas, as galinhas no pátio de casa, a decisão de não levá-las a panela por tornarem-se de estimação, o conhecimento de toda a vizinhança pelo nome, a visita aos mais chegados. São elementos cotidianos e marcantes da vida no interior, mas impraticáveis nas grandes cidades. Ele depara-se ora com o saudosismo e a nostalgia de sua cidadezinha, ora com a admiração, o encantamento e o entusiasmo quando se deslocava para os grandes centros em busca de tratamento e respostas aos problemas de saúde que o acometiam. O bater de sua bengala pelos obstáculos das cidades grandes, o emaranhado de comércios pelo centro de Porto Alegre, os bares e restaurantes, as infinitas vozes, barulhos de ônibus, buzinas, camelôs, grandes avenidas para atravessar. Situações já desafiadoras para qualquer pessoa que vive no interior e visita uma cidade grande, mas ainda um desafio maior quando se faz tudo isso sem enxergar.

O título me deixou emocionada em diversos momentos, por me identificar com muitos pontos trazidos pelo autor e também por conhecer tantas questões diferentes e que fugiam completamente da minha realidade. André Werkhausen Boone traz a importante lição de que “sem sonhos, não há lutas”. Não se considera um vencedor, mas “um constante lutador”. Um livro para ler, reler, emprestar e divulgar aos amigos. Disponível nas versões impressa e digital, acessível para pessoas com deficiência visual. Para aquisição, entre em contato através do whatsapp (54) 98127 8170 ou email w.booneandre@gmail.com.

O pior cego é quem não quer enxergar.

As pessoas olham para mim e percebem uma mulher com deficiência visual. Até ai, tudo certo. O problema é que, inevitavelmente, elas enxergam uma série de outras deficiências e incapacidades associadas. Apenas alguns exemplos a seguir para vocês entenderem do que estou falando.

– Você sempre foi assim?

– Nossa, você é tão bonita, nem parece que é cega.

– Pobrezinha, tão nova e já assim.

– Coitada, o que te aconteceu?

– Você anda na rua sozinha? Onde estão teus pais?

– Você sabe para onde vai?

– Você sabe que ônibus vai pegar?

– Você sabe onde vai descer?

– Você consegue chegar lá?

– Nossa, você é casada! Teu marido também é especial?

– Vocês moram com mais alguém que ajuda a fazer tudo?

– Você serve teu café sozinha? Não quer que eu sirva para você? É muito perigoso você vai se queimar…

– Você vai servir água sozinha? É perigoso, vai derramar…

– Como você anda na rua?

– Como você faz para andar em linha reta?

– Você trabalha?

– Você cozinha?

– Nossa, você é formada! Como fez para fazer a faculdade?

– Como você faz para se vestir?

– Quer que eu amarre teu sapato?

– Quer que eu coloque tua mochila nas costas?

Não contentes com essas perguntas, ainda escuto uma série de outras pérolas no sentido da cura ou da salvação espiritual:

– Não tem como fazer uma cirurgia?

– Nunca quis fazer um transplante?

– A medicina está tão avançada, em pouco tempo deve surgir algo
para você…

– Você já foi no centro espírita?

– Já fez promessa?

– Já foi no santuário…?

– Toma esse texto aqui, pede para alguém ler para você, tenho certeza que vai ajudar a te salvar….

– Não deve estar rezando com muita fé, tem que acreditar mais…

– Tenho uma simpatia que pode te curar…

– Vamos fazer uma cirurgia espiritual que vai te curar.

São tantas e tantas situações que fico exausta só de lembrar. Aqui tenho certeza que são apenas exemplos, devo estar esquecendo de várias situações, mas penso que com estes vocês conseguem ter uma ideia do que estou falando. Tudo isso para dizer que ando um tanto cansada de ser subestimada e colocada para baixo. Infelizmente as barreiras atitudinais são as mais graves. A falta de entendimento e de clareza da sociedade acerca de minha condição de pessoa com deficiência visual são as questões mais complicadas que enfrento diariamente. A subestimação, a falta de valorização, a colocação de minhas capacidades no lixo como se eu fosse inválida simplesmente por não enxergar.

O preconceito velado é o pior de todos. Ninguém me ofende diretamente, ninguém fecha a porta na minha cara, ninguém me xinga e até fingem que me tratam bem. Mas o que demonstram com suas ações é que pensam que não posso fazer nada. Não me passam trabalho. Não me solicitam nada. Não me incluem de verdade nas rotinas. Me colocam para baixo simplesmente por ignorância, por pura incapacidade de enxergar além da minha deficiência visual. Não sou barrada de entrar em um lugar, mas depois que estou dentro sou solenemente ignorada e subestimada. Essas atitudes doem muito, mais do que mil ofensas.

Na visão desses indivíduos, eu não deveria ser ninguém além daquela pessoa com bengala ocupando aquela mesa. Todos passam em volta e são coniventes com tudo isso. Ninguém é o responsável, mas todos são. Ninguém vai dizer que é preconceito, mas eu sei que é isso mesmo. Não tem outro nome. Mas para dizer que é preconceito eu preciso provar e é claro que ninguém vai admitir. Probavelmente eu estaria de “mi-mi-mi” e exagerando, pois todos lá me “adoram” como um bibelô. Digo isso porque se eu ficasse parada, sem incomodar, apenas como um enfeite, estaria tudo bem, estaria como elas queriam, como elas imaginavam que eu seria, apenas alguém para não fazer nada, um peso para ser carregado.

Não é preciso enxergar para perceber, é mais do que nítido que aquelas pessoas não me queriam ali. Eu não sigo o padrão. Eu questiono. Eu olho diferente para elas. Isso incomoda. Eu pergunto quem são., elas não sabem responder muito bem. Eu estou triste, ninguém vai notar. Eu sou apenas a deficiente visual daquele lugar.

Apesar de tudo isso, às vezes não sei muito bem de onde, mas tenho uma força interior que surpreende até a mim mesma. Quando meus olhos já estão marejados, estou com aquele aperto no peito e um nó na garganta, deixo passar um filme em minha mente. Lembro tudo que já passei até hoje, os obstáculos que tive que driblar, as atitudes preconceituosas que tive que superar, as portas que tive que forçar para abrir e a infinidade de “nãos” que levei e por sorte não acreditei neles. Até hoje tudo em minha vida sempre foi baseado em muita perseverança e na não-desistência. A teimosia, a insistência, a determinação, essas são minhas marcas registradas. Fico feliz comigo mesma ao constatar que cada não, cada atitude preconceituosa, cada porta aparentemente fechada, acabam me fortalecendo.

Percebo o quanto a sociedade ainda tem que evoluir. O quanto ainda tenho que demonstrar para as pessoas que o fato de eu ser uma pessoa com deficiência visual não me incapacita nas demais atividades da vida. Talvez eu não consiga ler a placa, mas talvez eu saiba melhor onde ir do que muitas das pessoas que enxergam. Talvez eu não saiba a cor de uma roupa, mas isso não me impedirá de me vestir sozinha, de buscar uma boa combinação, ser vaidosa, sair de casa, pegar ônibus, trabalhar, me divertir e viver. Tenho o mundo a desbravar, sonhos a realizar. É claro que tudo isso tem um custo emocional às vezes bastante elevado. Preciso quebrar barreiras o tempo inteiro em cada lugar novo que chego. Isso sinceramente cansa, por vezes fico exausta.

Muitas vezes me bate aquela vontade de que eu pudesse chegar em um contexto diferente sem precisar ficar explicando tudo, sem ser tão interrogada, sem ter que passar por perguntas constrangedoras o tempo todo, sem ter que ser simpática com pessoas sem a menor empatia e sem o menor bom senso. Queria apenas naturalidade. Será que estou pedindo demais?

Peço por gentileza que não tornem-se pessoas cegas por opção. Que abram os olhos e vejam as capacidades de todos os que os cercam. Jamais digam não antes de verificar todas as formas de dizer sim. Para além de uma deficiência, há um milhão de possibilidades.

PARA MUITO ALÉM DA MAQUIAGEM

Sou jornalista e durante algum tempo trabalhei em televisão com reportagem e apresentação de um programa. Era uma espécie de pré-requisito para aparecer no ar estar completamente maquiada. A maquiagem para TV tem a particularidade de que precisa ser forte, bem intensa, pois o rosto fica bastante exposto pelas câmeras e qualquer imperfeição na pele acaba sendo potencializada. A emissora que eu trabalhei era pública e não contava com um maquiador, então era os próprios profissionais que se arrumavam para entrar no ar.

Como minha visão não propicia enxergar detalhes, aprendi essa lição sobre a quantidade e intensidade de maquiagem de forma, no mínimo, inusitada. Um dia iria fazer uma espécie de teste, um programa-piloto, para saber se eu iria ficar na apresentação de um programa ou não. Ciente de que teria que estar maquiada, acordei mais cedo e antes de sair de casa pedi que minha mãe fizesse uma maquiagem em mim. Como eu não era uma pessoa acostumada a me maquiar, ela fez algo simples, sem carregar em nada. O problema é que acabou ficando uma maquiagem discreta demais para os padrões televisivos. Quando cheguei lá, certa de que estava pronta e linda para o teste, minha chefe na época perguntou:

– Quando tu vai te maquiar?

Com vergonha de dizer que já havia me maquiado e com receio de que não tivesse ficado boa, pensei rapidamente em uma resposta e disse:

– Pois é, para mim é complicado me maquiar, vou pedir ajuda para alguma colega.

E foi o que fiz. Foram várias repórteres e produtoras que se voluntariaram para me ajudar nesse primeiro dia. E o mais fantástico é que deu tudo certo no teste e eu fui muito elogiada. Mesmo sem ler o teleprompter (aquele equipamento que fica passando o conteúdo para o apresentador ler). Também não enxergava as câmeras. Os colegas do estúdio foram fantásticos me indicando com um estalar de dedos o momento de começar cada bloco e indicando com um papel branco a direção para qual eu deveria olhar. Isso porque o papel branco se destacava mais, no estúdio. As câmeras eram escuras e não tinham contraste com o fundo preto das paredes almofadadas do estúdio. Foram o Chiquinho e o Polga duas das pessoas mais especiais que me acompanharam nesse período de estúdio.

Para quem pensa que as soluções de acessibilidade e inclusão tem que passar pela aquisição de equipamentos caros e sofisticados vale destacar que foi uma simples folha branca de papel a solução para resolver a questão do meu direcionamento. Algumas vezes abria o programa olhando para uma câmera, tinha que virar para o entrevistado, fazer a pergunta e depois olhar para outra câmera. Se não tivesse o papel branco na nova câmera eu certamente ficaria perdida procurando para onde olhar. Com essa solução simples resolvemos toda a questão de posicionamento no estúdio. Acho inclusive que o fato de eu não ficar presa ao teleprompter, como acontecia com os demais colegas, me deixava mais desinibida e espontânea.

Somado a isso havia o fato de que eu não podia contar com as letras externas escritas no telepronpter para eu ler e saber o que deveria dizer ou perguntar ao entrevistado. Então todo o conteúdo do programa deveria estar na minha mente, o que fazia eu me preparar muito antes de entrar no ar e iniciar o programa – que não era uma gravação, era uma transmissão ao vivo. Chegava a brincar que tinha um teleprompter na mente e ficava imaginando as letrinhas passando na minha frente enquanto apresentava.
A abertura do programa, o nome dos entrevistados, tudo eu acabava sabendo de cor. Havia o ponto eletrônico no meu ouvido que muitas vezes me soprava informações importantes, mas eu precisava estar focada em conduzir as entrevistas para que os convidados pudessem se expressar e sentirem-se a vontade para isso. Muitas vezes precisava um pouco de psicologiae jogo de cintura porque os convidados não se sentiam à vontade em frente Às câmeras ou era a primeira vez que davam uma entrevista.

Comecei a apresentar o programa semanalmente e por alguns períodos apresentei diariamente. No início uma das coisas que me deixava insegura era o tema da maquiagem e como iria resolver a questão. Acabei optando por contar com a ajuda de colegas para me arrumar antes de qualquer gravação ou entrada ao vivo. Com o tempo, uma amiga que era estagiária na época e duas colegas foram me encorajando e me dando dicas para que eu pudesse fazer em mim mesma (Obrigada Kathlyn, obrigada Amanda! Obrigada Lirian!).

Fui praticando diariamente, então aos poucos aprendia e ganhava confiança nesse campo da maquiagem, até então desconhecido. Passei a memorizar as testuras das bases, pós e iluminadores, sombras etc. Decorava nas caixinhas qual era a ordem de passar cada coisa, qual a posição de cada item que iria usar. No início fazia com a ajuda delas, depois comecei a fazer sozinha. Mesmo assim, sempre pedia para conferirem para mim, pois com a minha baixa visão nunca conseguia saber se tinha algo borrado, se algo não tinha ficado uniforme, se havia caído alguma coisa na minha roupa, se o cabelo estava bom, entre uma infinidade de dúvidas.

Com o tempo elas já apenas esperavam eu me arrumar toda e ficavam esperando para a conferência final. Geralmente tinha uma ou outra coisinha para ajeitar, mas a grande produção era feita por mim.

Trabalhei durante seis anos para a Fundação Piratini, mantenedora das emissoras TVE e rádio FM Cultura. Durante um período eu apresentava o programa Cidadania. Em outros momentos fazia reportagens no telejornal da TVE e no TVE Repórter. Por fim, trabalhei na rádio FM Cultura também. Foi um tempo bom e que deixa saudades dos tempos áureos desses dois veículos, tendo em vista que a Fundação Piratini, com muito pesar, foi extinta pelo governo do Estado do RS. De qualquer forma, assim como os programas que produzimos e as pautas que realizei sei que os dois veículos deixaram suas marcas positivas na formação da audiência, bem como na formação cultural e educativa da sociedade.

Foi durante o período que trabalhei lá que conheci uma das pessoas mais especiais da minha vida, meu marido Rafael. Nos aproximamos, aliás, em uma reportagem, na qual ele foi meu entrevistado. Fui fazer uma matéria sobre paradesporto. A modalidade escolhida foi a vela adaptada. Ele tem baixa visão e junto com colegas cadeirantes, com mobilidade reduzida ou com algum membro amputado praticavam vela adaptada em Porto Alegre, que é banhada pelo lago Guaíba.

Naquela oportunidade eu e o Rafa já estávamos interessados um no outro e gravar a entrevista com o grupo foi um motivo para nos encontrarmos. O Rafa, com seu desprendimento e ousadia, chegou a roubar o microfone da mão da repórter no final da entrevista e disse que iria me entrevistar. Fiquei completamente envergonhada e aquela entrevista foi o primeiro passo para darmos prosseguimento nas nossas conversas e início do namoro. Mas o que eu queria contar sobre ele está relacionado ao tema inicial deste relato, que é a questão da maquiagem.

Desde a adolescência, quando conhecia um carinha interessante na escola, faculdade ou em algum outro ambiente, me preocupava muito se ele iria se interessar por mim porque naquela época não costumava me maquiar, nem mesmo fazia coisas diferentes no cabelo. Quando tinha uma festa ou evento especial pedia sempre auxílio para minha mãe ou alguma amiga. Na adolescência não usava bengala, mas no início da fase adulta comecei a usar porque minha visão estava pior. Outra dúvida que me questionava é se os homens iriam se interessar por uma mulher com bengala e com deficiência visual.

Durante muito tempo carreguei essa insegurança e escondia a bengala, mesmo cometendo algumas gafes. Era como se eu precisasse me aproximar muito da pessoa para lhe contar uma espécie de “segredo”, que era o fato de que eu tinha baixa visão. Disfarçava o máximo que podia as dificuldades de enxergar, sempre me aproximando devagar dos objetos e das pessoas, evitando os restaurantes buffets que sempre foram mais complicados por não identificar as comidas, caminhando cautelosamente, olhando para o chão para não cair e até seguindo as pessoas na rua para saber o caminho por onde deveria andar. Com o Rafa isso ocorreu de forma diferente, pois o fato de eu ter deficiência visual acabou nos aproximando mais e trazendo muitos assuntos em comum.

Quanto à maquiagem, ele acabou quebrando todos os meus próprios paradigmas e preconceitos. Um dia ele me disse que gostava mais de mim sem maquiagem porque podia sentir o cheiro da minha pele e o meu perfume ficava mais intenso. Quando eu estava maquiada depois de sair da TV eu tinha muito pó e coisas artificiais no rosto, podendo até manchar sua roupa conforme nos abraçávamos. Ele afirmava sempre que eu era linda ao natural e que até a textura do meu rosto não era a mesma com a maquiagem. Além disso, o próprio cheiro da maquiagem e da base eram artificiais.

Sei que essas observações dele têm relação com o fato de que ele também tem baixa visão e provavelmente não percebia a diferença da minha aparência com a maquiagem. Mas isso me fez pensar sobre as diferentes formas de beleza e sobre a sensibilidade desenvolvida por pessoas com deficiência visual. Aspectos que são importantes para os outros talvez não tenham a mesma relevância para nós. De alguma forma ele falar isso foi libertador. Na verdade os aspectos que são importantes para uma pessoa não necessariamente são importantes para outra. E no caso de pessoas com deficiência visual a beleza poderia ser percebida de diferentes maneiras.

Dessa forma, começamos a namorar e eu pensei que ao invés de me preocupar com a maquiagem devia me preocupar mais com os perfumes que usava. Foi então que fui ainda mais surpreendida – e acho que esse é o segredo da nossa relação. Tinha vários perfumes, mas sempre um era meu favorito. Foi quando percebi que mais de uma vez ele disse que adorava o meu perfume. Mas para meu espanto dizia isso justamente em dias que não estava com perfume nenhum, o que me deixava ainda mais intrigada. Falei para ele que não estava usando perfume e ele repetiu então que eu estava linda com a minha essência. Disse que gostava de me abraçar, beijar e me sentir com toda minha naturalidade.

Esse foi um início muito diferente de relacionamento, diferente de qualquer história que tenha tido antes. Primeiro porque era o amor da minha vida, hoje meu marido, que eu amo muito. Segundo porque acredito que tenha dado tão certo em função de que me voltei para dentro de mim mesma, para tentar mostrar para ele o que havia além da maquiagem, além do rosto cheio de base e pó para televisão ou além do perfume cheiroso de marcas famosas. Procurei mostrar a mulher linda que existia em mim – por dentro e por fora. Ele passou a me conhecer, a desbravar comigo o mundo, descobrir segredos e topar todo tipo de aventuras ao meu lado. Assistia os programas que eu apresentava na TV, mandava comentários, participações e comentava comigo sobre o conteúdo e as pautas tratadas.

Penso hoje que talvez essa história jamais tivesse avançado se eu seguisse preocupada com a maquiagem e com o exterior. Nada como o pé na grama, um banho de chuva, a aventura num camping para a guria de apartamento, as longas caminhadas, o cabelo escabelado e a sensação do barco a vela na reportagem ajudando a aumentaro frio na barriga. Hoje seguimos nas aventuras, com muitas pedaladas com o grupo de ciclismo da Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (ACERGS), coordenado pelo Rafa. Andamos em bicicletas duplas, onde quem enxerga vai na frente e a pessoa com deficiência visual vai atrás. Novamente a maquiagem desaparece: colocamos capacetes, a mulherada prende o cabelo, o suor escorre no rosto e o mais importante é a adrenalina, o vento no rosto e as emoções.

Recentemente realizamos juntos um dos sonhos da minha vida: voamos de balão. Foi algo incrível. O balão voando, o vento soprando, o flutuar nas alturas, a sensação de estar lá em cima, a liberdade, a decolagem, o pouso e tudo mais. Rafa, obrigada por ser o meu companheiro de todas as horas. Das viagens de barco, de avião, de ônibus, das pedaladas de bike, dos piqueniques, dos acampamentos, dos shows inesquecíveis, das músicas e das horas ruins também.

Hoje estou em um trabalho novo na UFRGS, onde não tenho a exigência de me maquiar, mas meu lado vaidoso faz com que eu me maquie todos os dias. Faço esse exercício externo de passar maquiagem, mas na verdade estou olhando para dentro de mim e cuidando do meu lado emocional e psicológico. Tenho uma nova colega, que se tornou uma grande amiga, Renata, que me assessora e avisa se não borrei nada.

Passo base no rosto, blush, rimel, lápis e batom. Olho no espelho e não percebo nada diferente. Fico igual a antes. Chego a imaginar a mudança no visual, mas realmente qualquer transformação não me aparece visualmente, mas emocionalmente. Descobri por que gosto – e admito que gosto muito – de me maquiar. Passar base o rosto significa fazer um carinho na própria pele, significa parar por um instante, olhar para o espelho e não ver diferença nenhuma e pensar o quanto sou uma mulher bonita. Significa lembrar que me amo, com ou sem visão. Mesmo que minha visão esteja diminuindo a cada dia, mês ou ano – o que me causa muita dor e lágrimas -, amo e valorizo o pouquinho de visão que tenho. Amo fazer carinho na minha pele todos os dias pela manhã. Passo a base com protetor solar para prevenir as manchas e o envelhecimento.

Em meu novo trabalho como servidora pública da UFRGS posso passar uma maquiagem leve, sem a necessidade do pó – que tinha que usar em grande quantidade na televisão. Passo rimel transparente, que também é uma massagem nos sílios. Passo blush bem discreto, gloss só para dar uma corzinha. Faço tudo com o auxílio do tato e das outras percepções. Depois desse momento de beleza olho para o espelho e penso que estou linda, que sou linda, que me amo, que o dia será maravilhoso. As grandes belezas da vida talvez nunca possam ser vistas com a visão. Para além da maquiagem e do universo exterior há um mundo a ser desbravado e construído com mais amor e menos superficialidades.

Por Mariana Soares