O depoimento de quem trabalha para tornar o Planetário acessível

Para quem leu a postagem anterior, em que conto a minha experiência no Planetário da UFRGS, indico a leitura do texto que segue abaixo, da autoria de Marcelo Cavalcanti da Silveira. Teremos a oportunidade agora de, através de suas palavras, conhecer o “outro lado” dessa história. O autor descreve seus esforços e o processo, que segue em andamento, para tornar o local acessível.

 

Audiodescrição Possível,

O Caminho das Estrelas

Autor: Marcelo Cavalcanti da Silveira – jornalista

 

“Eu não posso fazer tudo; contudo, posso fazer algo. E porque não posso fazer tudo, não recusarei o algo que eu posso fazer.” (Edward E.Hale)
Quando comecei a trabalhar no Planetário, ouvi histórias de cegos que iam “assistir” as sessões. Eu me perguntava o que eles “veem”? Os cegos e pessoas com baixa visão com certeza ouviam a música e as narrações, mas e as imagens?

Na reunião da ABP (Associação Brasileira de Planetários) no Rio de Janeiro em novembro de 2010, ouvi o colega Marcos Calil de SP falar sobre acessibilidade para cegos nas sessões de planetário e apresentar alguns problemas e soluções para descrever o céu para as pessoas que não veem da forma dita convencional, os cegos e as com baixa acuidade visual. Uma primeira semente. A experiência de SP infelizmente se resumiu a uma única sessão.

Em maio deste ano,  no Curso de Acessibilidade em Ambientes Culturais na UFRGS, tive um contato mais de “perto” com o que é a audiodescrição (AD). Assisti a um curta metragem com audiodescrição, meu primeiro filme ouvido. Nesta época, tinha recém terminado a produção do programa audiovisual de planetário em comemoração aos 50 anos do homem no espaço, “O caminho das Estrelas”. E consequentemente surgiu a vontade, ou melhor o sonho, de “ver” o programa acessível a cegos. E comecei a procurar parceiros e as soluções possíveis.

O tempo foi passando, a falta de recursos técnicos e financeiros, o desinteresse das pessoas em colaborar, inclusive de audiodescritores – que não embarcaram nesse sonho, não me fizeram desistir. Fui tateando no escuro, procurando uma luz no fim do túnel. Ciente das dificuldade que viriam, mas com a certeza que é possível fazer a AD. Segui neste caminho com a determinação que a lembrança e o exemplo de Yuri Gagarin me proporcionam. É verdade, tive vontade de jogar tudo longe e me pasmar na mesmice. Mas segui, e mesmo que a AD do Caminho das Estrelas não fique perfeita (será que tem de ser perfeita?), não fique “profissional”, ela terá o valor do meu sonho. O sonho de fazer a diferença, por menor que ela seja.

A minha visão sempre foi predominantemente poluída pela imagem, afinal minha maior experiência na Comunicação é a Televisiva – fui durante muito tempo repórter cinematográfico e produtor de TV. A partir do convívio com as particularidades comecei a experimentar não mais ver, mas sentir as imagens. Vibrar com as sensações que a ideia do céu estrelado me proporcionam e tentar descrever não mais com imagens, mas com as palavras, das quais não sou muito afeto, o que sentia. Minha relação com as coisas do céu é puramente empírica e se resume a observação do céu, a leitura de alguns (poucos) livros e a prática diária de quase sete anos passando sessões de planetário para diversos públicos. Aldebarã, a estrela mais brilhante do Touro, é vermelha, Júpiter, o maior planeta, brinca de ser estrela e Plutão, ah, Plutão é anão. O céu que vemos é real ou será apenas uma imagem do passado distorcida pela atmosfera.

No curso de Inclusão e Acessibilidade no Ensino Superior conquistei uma habilidade: perceber que a acessibilidade começa com o Amor e com se tornar acessível, talvez o maior desafio. Com isso em mente tento fazer a AD do Caminho das Estrelas.

Coríntios,13 – Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se não tivesse amor…Nada seria

Para mim, o importante é que todos somos (praticamente) iguais. Somos seres humanos, filhos do mesmo planeta Terra e que todos nós temos o mesmo direito de aqui estar e de ser feliz. As diferenças são na verdade “particularidades”, e as chamadas deficiências podem ser contornadas com a inteligência e tecnologia movidas pela vontade. A inclusão é, portanto direito “divino” que conquistamos como o nosso dever de fazer o mundo melhor e igual para todos.

De coração, espero que esta minha “loucura” de fazer do nada uma AD, incentive aos profissionais da área a se preocuparem com acessibilidade do céu (do planetário) para todos. Não posso deixar que agradecer aos poucos, mas valentes, que me incentivaram e ajudaram com suas ideias, sugestões e apoio. Aos amigos e os colegas do Programa Incluir, meu muito obrigado.

Finalizando cito as palavras da jornalista Mariana Soares no seu blog Três Gotinhas, e por isso eu acho que vale a pena, (nem que seja só tentar).

 

Quando penso na audiodescrição, ainda me parece um sonho. Um universo infinito a ser explorado e desvendado em cada detalhe. Audiodescrição, em outras palavras, significa liberdade, autonomia, igualdade e respeito às diferenças. O acesso à cultura, ao entretenimento e à informação resgata o sentimento de pertencimento e de integração a um contexto, até então, inacessível e distante.

Às vezes tenho medo de acordar desse sonho e descobrir que é mentira. Sei que é real e que está aí. Meu maior receio talvez seja o de que esse recurso não seja disseminado e incorporado às salas comerciais de cinemas, teatros e espetáculos.

….

O meu sonho, nesse sentido, é estar viva para presenciar o dia em que todos os espetáculos, filmes e eventos tenham audiodescrição. Quero que Jorge Rein possa um dia reescrever esse texto sem precisar apontar os raros locais que viabilizam a audiodescrição no país, mas criticando e apontando especificamente aqueles que ainda não a possuem – constituindo-se eles de exceções, alvo de rechaça e contestação de toda a sociedade. Espero que isso não seja apenas um sonho, mas uma realidade possível e, a cada dia, mais próxima.

(Mariana Baierle Soares, http://tresgotinhas.wordpress.com/2011/10/06/autonomia-e-liberdade-um-sonho-possivel/)

 

Marcelo Cavalcanti da Silveira, jornalista

Porto Alegre, outubro de 2011.

Planetário, acessível a deficientes visuais?

Quando se fala em Planetário, alguém pensa em um local acessível para deficientes visuais? O jornalista Marcelo Cavalcanti da Silveira, meu colega no curso de Acessibilidade no Ensino Superior da UFRGS, está contribuindo para a quebra desse paradigma. Ele trabalha no Planetário da UFRGS e, com criatividade, vontade e determinação tenta tornar o local acessível e atraente a cegos e pessoas com baixa visão.

Minha experiência, quando criança, em uma visita com a escola ao Planetário da UFRGS, foi traumática. Todos os alunos sentam numa sala redonda escura para assistir à sessão. Eu não sabia sequer para onde deveria olhar, o que deveria fazer, se havia uma “televisão” em algum ponto ou se as imagens seriam passadas por toda a parte, se eu devia olhar para cima, para baixo, para os lados…

Apenas escutava o áudio da sessão, incomodada e desconfortável, esperando que aquilo terminasse o quanto antes. Não havia ninguém para me explicar e me situar sobre o que estava acontecendo.

Fiquei com a ideia de que esse negócio de céu, planetas, estrelas, constelação “não era para mim”. Mas será mesmo? Hoje, após cerca de 15 anos, vejo que esse ambiente pode vir a ter improtância significativa na minha vida.

Em visita essa semana ao Planetário da UFRGS fiquei impressionada positivamente com a receptividade e, como diria o Felipe Mianes, com o “acolhimento” que senti. Posso dizer que, agora, de fato, entendi e percebi melhor o Planetário.

Entrei, com péssimas lembranças na memória, na mesma sala de projeções que havia estado com a escola. Dessa vez, porém, o Marcelo me explicou que as projeções do céu correm por toda a sala, pelo teto e pelas paredes. Tentei vê-las, mas como é uma sala muito escura e os pontinhos de estrelas, muito pequenos, não foi possível.

Ele foi quem, pela primeira vez, me situou naquele ambiente até então misterioso e estranho. Mostrou-me o aparelho que fica no meio da sala, girando, fazendo barulho e emitindo luzes coloridas. Levou-me até a mesa onde o controlador da sessão dá os comandos. Indicou-me os pontos cardeais dentro da sala redonda e escura, batendo palmas no norte, sul, leste e oeste. Atitudes talvez pequenas para ele, mas imensa para mim.

Talvez você esteja se perguntando, afinal, o que eu de fato vi na sessão do Planetário? Escutei ao áudio de 37 minutos da sessão “O Caminho das Estrelas”, cuja audiodescrição está em fase de finalização pelo Marcelo e a equipe do Planetário.

Está sendo produzido ainda o desenho em relevo das constelações citadas na projetação. Assim, imagens que podem ser visualizadas por muitas pessoas em “O Caminho das Estrelas”, podem ser também tocadas e vistas de outra forma por quem não enxerga o mundo da forma convencional. Um verdadeiro exemplo de respeito e compreensão das diferenças.

Além disso, no hall de entrada do prédio, havia duas exposições. Uma com maquetes táteis das fases da lua. Outra com peças de cerâmica, produzidas pelos alunos do curso do Instituto de Artes da UFRGS. Nem todas as peças podiam ser tocadas, pois algumas estavam dentro de um vidro. Havia legendas em braille, mas nem todas tinham fontes ampliadas para baixa visão.

Essa visita ao Planetário, ainda que eu aponte pontos que precisam ser aprimorados, foi uma experiência emblemática. Na comparação do que percebi há 15 anos, me senti em um local diferente. Não que a instituição atualmente disponha de muitos recursos financeiros e tecnológicos ou que a estrutura física do prédio tenha mudado.

O que temos de diferente hoje é um maior empenho, comprometimento e sensibilidade do homem com seus semelhantes. Uma prova concreta de que é possível fazer muito, mesmo com poucos recursos financeiros e sem as condições ideais que seriam desejáveis.

A comparação entre minha visita de agora e a de 15 anos atrás me mostrou como é possível, com poucos recursos (mas muita vontade e disposição), tornar o local – e todo o Planeta Terra quem sabe – acessível.  Uma mudança de consciência e postura das pessoas ocorre devagar. Mas é bom perceber que, de alguma forma, isso está acontecendo.

Aos poucos a audiodescrição está sendo disseminada. E cabe lembrar aqui que não basta ter a audiodescrição, é preciso, antes de tudo, pessoas dispostas a receber bem o visitante, a acolhê-lo e situá-lo naquele contexto antes de simplesmente colocá-lo para assistir a uma sessão.

Autonomia e liberdade: um sonho possível

Faz pouco tempo que me deparei com a tal da audiodescrição e suas infinitas potencialidades. A cada dia, quanto mais conheço sobre o tema e a cada novo filme assistido, mais fico encantada e envolvida pelas novas possibilidades de lazer e acesso à cultura que se abrem para mim.

É fascinante sentar em frente à televisão sem estar angustiada ou indiferente por não captar os detalhes que só as imagens propiciam, ou ainda, sem incomodar quem está ao meu lado com incessantes perguntas sobre o que está se passando. Sinto-me vibrante e entusiasmada a cada segundo de audiodescrição por finalmente captar o sentido da história – uma sensação única jamais vivenciada em qualquer sala de cinema.

Passei, pela primeira vez, a criar expectativa sobre os filmes, a esperar que seu enredo me agrade, me envolva, tenha um significado na minha vida ou apenas me divirta. Antes, confesso, não esperava nada de um filme. Porque simplesmente não os assistia ou não os acompanhava.

Quando penso na audiodescrição, ainda me parece um sonho. Um universo infinito a ser explorado e desvendado em cada detalhe. Audiodescrição, em outras palavras, significa liberdade, autonomia, igualdade e respeito às diferenças. O acesso à cultura, ao entretenimento e à informação resgata o sentimento de pertencimento e de integração a um contexto, até então, inacessível e distante.

Às vezes tenho medo de acordar desse sonho e descobrir que é mentira. Sei que é real e que está aí. Meu maior receio talvez seja o de que esse recurso não seja disseminado e incorporado às salas comerciais de cinemas, teatros e espetáculos.

Não basta audiodescrição apenas em circuitos alternativos, festivais pontuais, sessões em horários diferentes dos que todo mundo costuma sair e se divertir. Quero assistir a filmes no mesmo horário, no mesmo local que meus amigos assistem. Quero audiodescrição como algo comum e usual em qualquer lugar, em qualquer evento.

Sim, em qualquer evento. Não é apenas no cinema que esse recurso é importante, mas em toda atividade artística, cultural, esportiva ou situação em que as imagens sejam relevantes para compreensão de seu significado e sentido.

Ao ler o texto “A audiodescrição entra na dança”, de Jorge Rein (disponível em http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/issue/view/9/showToc), talvez eu tenha compreendido melhor o alcance desse recurso. Percebi a magnitude, ainda inexplorada por mim, da audiodescrição em diferentes ambientes e situações. Segundo o autor: “A audiodescrição pode ser definida como a tradução de imagens em palavras.  Sua aplicação, neste sentido, é universal. Qualquer produto que ofereça informações visuais é passível de ser audiodescrito e a dança não representa uma exceção”.

Fico satisfeita é saber que muitos coreógrafos, companhias de dança e de teatro já disponibilizam espetáculos audiodescritos. O texto cita exemplos de eventos em diversas partes do Brasil.

O meu sonho, nesse sentido, é estar viva para presenciar o dia em que todos os espetáculos, filmes e eventos tenham audiodescrição. Quero que Jorge Rein possa um dia reescrever esse texto sem precisar apontar os raros locais que viabilizam a audiodescrição no país, mas criticando e apontando especificamente aqueles que ainda não a possuem – constituindo-se eles de exceções, alvo de rechaça e contestação de toda a sociedade. Espero que isso não seja apenas um sonho, mas uma realidade possível e, a cada dia, mais próxima.

Texto “Adivinhação” na voz de Felipe Mianes

Meu amigo Felipe Mianes fez a gentileza de gravar em áudio meu texto “Adivinhação”, publicado aqui no dia 01/setembro. Fiquei emocionada com o resultado, pois ele é muito talentoso e a interpretação ficou ótima. Mas o que me deixou mais satisfeita é saber que, dessa forma, o texto estará acessível a um número maior de pessoas.

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Por Mariana Soares