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Banquinhos diferentes para pessoas diferentes

“Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza” (Boaventura Souza Santos).

Ainda estou emocionada com o Seminário que ocorreu essa quarta-feira (26/2) em Porto Alegre sobre Acessibilidade em Concursos Públicos. O auditório da Defensoria Pública do Estado, com lugar para noventa pessoas, estava completamente lotado, com gente de pé. Foram pessoas que dedicaram uma tarde inteira de um dia de semana, com chuva, para estar no evento.

Presenciei pela primeira vez pessoas cadeirantes, cegas, com baixa visão, mobilidade reduzida e pessoas sem deficiência unidas pela mesma causa. O tema sensibilizou a todos, salientando o quanto ainda é preciso avançar em termos de acessibilidade em concursos. O evento foi divulgado com pouca antecedência (de uma semana para outra) e, ainda assim, teve uma repercussão enorme.

Durante minha fala pude entregar formalmente à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo do Estado (na figura da diretora de Direitos Humanos Tâmara Biolo Soares) a lista de 14 propostas para ampliar a acessibilidade em concursos, que está publicada aqui no blog (postagem anterior). O texto foi redigido por mim com sugestões e alterações indicadas pelos leitores do Três Gotinhas (a quem, mais uma vez, agradeço pelos encaminhamentos e pela participação nesse movimento – seja através das redes sociais ou presencialmente lá no seminário).

A palestra que abriu a tarde foi do auditor fiscal do trabalho de Pernambuco Fernando André Sampaio Cabral. A fala dele foi muito densa sobre legislação brasileira, Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e as aplicações disso tudo nos concursos.

Um dos maiores problemas enfrentados pelos candidatos ainda é a alegação das bancas de que todos deverão ter “igualdade de condições” para realizar a prova. O maior problema, segundo ele, é justamente a interpretação que se dá ao termo “igualdade”. Conforme lembrou o palestrante. “igualdade” não significa tratar igualmente aqueles que são diferentes, mas sim tratar de maneira diferente aqueles que são diferentes – promovendo a justiça e a equidade de condições.

Em tempos de Copa do Mundo, o auditor fez uma analogia bem prática e eloquente. Citou o caso de três pessoas com estaturas diferentes, que querem assistir a um jogo de futebol em um estádio. Uma é muito alta, outra tem estatura média e outra é bem baixinha. Aquela que é bem alta consegue assistir com tranquilidade ao jogo. Aquele que tem estatura média precisa subir em um banquinho para ver o jogo. E aquela que é bem baixinha precisa de dois banquinhos para ver o jogo. Desse modo, os três podem assistir ao mesmo jogo: um sem nenhuma adaptação e os outros cada um com a adaptação necessita.

(Desculpem interromper o raciocínio, mas preciso fazer uma observação importante: se um deles fosse cego ou com baixa visão não adiantaria nada o banquinho. Seria preciso, sim, um fone de ouvido com audiodescrição!).

Esse exemplo é bastante significativo, pois o que ainda falta às bancas e entidades que aplicam as provas de concursos é fazer valer o direito das pessoas de utilizarem-se do “banquinho” mais adequado para elas, de modo que possam executar a mesma prova que os demais.

Não é possível normatizar as deficiências e particularidades de cada sujeito e colocar todos os candidatos em condições de “igualdade” quando as pessoas não são iguais. Lembrando o caso que ocorreu comigo na prova da Secretaria da Saúde do RS aplicada pela Fundatec, não é possível pré-estabelecer que todos os candidatos com baixa visão irão ler a prova com uma fonte 16 (sendo que eu solicitei fonte Arial Black 22). Do mesmo modo, não é possível estabelecer que todos os candidatos cegos queiram realizar a prova em braile ou com ledor. É preciso que as pessoas tenham opção de escolha e tenham sua autonomia garantida.

Nesse sentido, as bancas organizadoras de concursos teriam muito a aprender com o Programa Incluir da UFRGS, que atende os alunos e servidores com deficiência da Universidade. Foi lá o primeiro lugar, durante toda minha vida escolar e acadêmica, em que me perguntaram: “O que você precisa?”. O tamanho da fonte não foi imposto. A necessidade de utilizar braile não foi imposta, nem mesmo a obrigação de contar com um ledor. Entretanto, esses recursos estavam lá e eu poderia contar com eles conforme minhas necessidades. Ou seja, ninguém poderia decidir por mim quais seriam os melhores recursos.

A própria forma como as bancas de concursos apresentam o formulário de atendimento especial no Edital já revela a tentativa de normatização a qual as pessoas com deficiência são submetidas sumariamente. Existe a opção para eu marcar “prova ampliada”, mas não há o campo em branco para eu preencher o tamanho da letra e a fonte necessária. Há a opção “sala de fácil acesso”, mas não existe a espaço para especificar outras adaptações necessárias na sala, como, por exemplo, mesas ou cadeiras adaptadas (para pessoas com nanismo, paralisia ou outras dificuldades motoras). Ou seja, existem questões que sequer tem espaço para serem mencionadas nesse formulário em que o candidato indica suas necessidades.

Ignorar as demandas específicas de cada candidato, conforme lembrou o auditor Fernando, é um ato discriminatório e é crime. Dizer que o único tamanho possível de ampliação de prova é com fonte 16 é inconstitucional. Na verdade, uma adaptação muito simples de ser oferecida como essa já não é cumprida. Imaginem outras adaptações mais elaboradas!

Foram muitos problemas identificados ao longo de seminário. Não restam dúvidas quanto à precariedade dos concursos quanto à acessibilidade. Como encaminhamento do evento, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do RS se comprometeu a criar um Grupo de Trabalho para tratar do tema e, a partir disso, estabelecer um regulamento para ser válido em todos os concursos do Estado.

Espero que esse Grupo de Trabalho seja composto o mais rápido possível e que seja formado também pelas próprias pessoas com deficiência e entidades representativas, pois são elas quem realmente poderão responder à pergunta: “O que vocês precisam?”.

Ouvir as demandas da sociedade nesse Seminário foi o primeiro passo. Espero que, daqui pra frente haja comprometimento efetivo de todos os envolvidos nesse processo (principalmente as bancas organizadoras de concursos).

Precisamos dar “banquinhos” diferentes para aqueles que são diferentes. Caso contrário, a deficiência do Estado continuará anulando as características e peculiaridades de candidatos com deficiência – que estão em busca de oportunidade de trabalho e de mostrar o seu talento e capacidade para contribuir com o setor público brasileiro e com a construção de uma sociedade mais justa e “igualitária”, com respeito as diferenças.