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DO SONHO AO NASCIMENTO

Quero compartilhar com você, querido leitor, uma grande novidade. Para quem ainda não sabe, o sonho de ser mãe se concretizou na minha vida. Isso mesmo, minha filha Natália nasceu no dia 10 de junho desse ano. Ela é linda e está com quase quatro meses. Você deve imaginar também que a correria anda enorme e por isso, a dificuldade em manter o blog atualizado.

Mas desde o início da gestação não deixei de escrever. Essa é a segunda grande novidade. Desde que descobri que estava grávida em outubro do ano passado comecei a escrever um grande relato que irá em breve ser publicado em livro.

Nas cerca de 160 páginas falo sobre o sonho da gestação, a gravidez em si, o acompanhamento pré-natal, minha deficiência visual e a decisão de ser mãe, as adaptações necessárias em minha rotina e na preparação para a chegada da nenê, os preconceitos enfrentados já desde o início da gestação, os maiores desafios etc. Tudo isso em um contexto em que parte da minha gestação foi permeada pela pandemia do Corona Vírus e pelo isolamento social. O chá de fraldas, as visitas na maternidade e na nossa casa não puderam acontecer.

A filhota nasceu forte e saudável em meio a esse contexto adverso que o mundo enfrenta. No livro conto também os receios com relação a ganhá-la nesse período, os auxílios que eu e meu marido (que também tem deficiência visual) recebemos, entre outros aspectos. Então a obra é permeada por todos esses pontos, o que acredito que sejam pautas que chamem atenção de leitores que queiram conhecer realidades diversas enfrentadas durante o isolamento social, além de detalhes da preparação de uma mamãe de primeira viagem com deficiência visual para a chegada de seu maior tesouro.

Estou em fase de revisão final do livro antes de enviá-lo para publicação. Como ainda não fechei o título, a editora e data de lançamento, vou deixá-lo na curiosidade e trarei mais informações sobre tudo isso em publicações posteriores. Para não dizer que não publiquei nenhum trechinho da obra aqui no Três Gotinhas, separei um capítulo inteiro para brindar quem me acompanha por aqui. O capítulo que publico abaixo foi escrito em fevereiro deste ano, ainda antes da pandemia assolar o Brasil, quando minha vida ainda seguia uma rotina relativamente “normal”.

Na metade do segundo trimestre da gestação entramos em quarentena e passei ao trabalho remoto. Embora na época acreditasse que poderia voltar ao trabalho presencialmente antes da licença-maternidade, logo percebi que isso seria impossível e estou em casa, no fim das contas, desde março deste ano.

Tomara que vocês gostem do capítulo e a curiosidade pelo texto completo fique aguçada. Boa leitura!

LEITURAS E DIVAGAÇÕES

Durante o feriadão de carnaval no final do mês de fevereiro, quando eu já estava com vinte e quatro semanas de gestação, resolvi dar um tempo para minha mente e pensamentos até então completamente absortos no universo da maternidade e buscar uma leitura diferente.
Estava um pouco saturada de assistir vídeos, podcasts e comentários exclusivamente sobre amamentação, quartinhos de bebê, fases do desenvolvimento da criança, entre outros tópicos relacionados.

Todos esses temas eram de imensurável interesse desde o início da gestação, mas confesso que em determinado momento começava a achar tudo um pouco enfadonho e me questionava se eu estaria perdendo minhas outras identidades, gostos, características e personalidade.

Sabia racional e conscientemente que não, que seria a mesma mulher, acrescida agora de uma identidade a mais, pois me tornava também a mãe da Natália. Contudo, a maternidade era uma novidade tanto para mim quanto para os outros na relação comigo.

Percebia, de forma bastante nítida, que as pessoas somente puxavam assuntos comigo relacionados à gestação, aos preparativos para a chegada da nenê, sobre como seria o parto etc. Eram pautas inevitáveis e geralmente adorava conversar sobre isso.

Entretanto, eu continuava fazendo as mesmas coisas de antes: trabalhava, me preocupava com minha vida profissional e como seria dali para frente, saía de casa, tinha grupos de amigos, família, marido, casa para administrar, exercícios físicos para fazer, conta bancária e preocupações diversas. Assim, considerava um pouco estranho não conversar mais sobre assuntos que costumava falar anteriormente, tendo em vista que os outros aspectos da minha vida seguiam, na medida do possível e com algumas adaptações, como antes.

Nessa fase lembrei muito do que conversei certa vez com uma amiga sobre essas inquietudes e divagações. Ela dizia que parecia que tinha deixado de ser ela mesma por um tempo, que durante a gestação e nos primeiros meses do nenê ninguém se referia a ela com os mesmos assuntos que se referiam anteriormente, que inclusive no seu próprio aniversário davam presentes para seu bebê e queriam o tempo todo paparicar o filhote.

O fato dos amigos e familiares demonstrarem afeto pela criança era ótimo, mas seria fundamental também a manutenção da boa autoestima da mãe. Se a mulher não tivesse bem consigo mesma também não conseguiria cuidar do bebê com a dedicação e o zelo que precisava. Dar conta e ter espaço para os outros aspectos da vida era saudável e necessário.

Naquele momento as palavras da minha amiga caíam como uma luva para representar tudo o que eu sentia. Certa noite, sem entender bem o porquê, chorei desenfreadamente. Chorei como uma criança, talvez porque tivesse muitos medos e angústias sobre como seria a sensação e a responsabilidade de cuidar de uma criança.

Talvez por sentir que deixava minha posição de filha de vez para trás e agora eu era mamãe.

Talvez porque tudo aquilo que eu desejara muito estivesse acontecendo e eu não soubesse ainda como lidar.

Talvez porque eu mesma esperasse muito de mim naquele momento, me cobrava respostas e até uma experiência que eu não tinha.

Talvez porque eu quisesse demonstrar força e segurança, me esforçando para encobrir meus medos dos outros e de mim mesma.

Talvez porque eu tivesse medo de não dar conta de alguns outros projetos profissionais que eu tinha idealizado, como o plano de fazer um doutorado, que havia sido temporariamente suspenso.

Talvez , e este talvez tenha sido o maior motivo, por ficar me perguntando se eu seria uma mãe à altura das necessidades e demandas da Natália.

Chorei desenfreadamente por umas duas horas. Foi uma catarse que limpou minhas angústias e ajudou a relaxar um pouco de tantas tensões e preocupações. Sabia que eu era exigente demais comigo mesma, queria que tudo ocorresse perfeitamente, mas tinha consciência que a maternidade não seria algo que eu pudesse controlar ou prever. Teria de passar por contratempos, imprevistos e me adaptar às diferentes situações.

Sentia um turbilhão de emoções mexendo comigo. Era o corpo se transformando o tempo todo. Eram as roupas que não cabiam mais. Era a minha mente que não funcionava mais como antes. Agora eu estava o tempo todo me preocupando com tudo e pensando como eu faria as mesmas coisas de antes com uma bebezinha.

Aliás, será que eu conseguiria fazer as mesmas coisas? As mudanças eram biológicas e hormonais. Não poderia ir contra isso, sabia que faziam parte do processo. Ainda assim, era difícil e traziam uma série de desafios inclusive psicológicos.

Apenas naquele período da gestação havia entendido com profundidade o significado e a dimensão das sensações descritas por minha amiga, que passaram a tocar minha alma. Ela me contou, naquela conversa, que acreditava que o fato da mãe sentir-se em segundo plano nas relações sociais em parte era natural, porque era sem dúvidas uma mudança radical na vida de qualquer mulher e biologicamente a própria mãe sempre colocaria seu filho como prioridade.

Mas o importante era que depois de um tempo as coisas começariam a se encaixar novamente. Ela não sabia dizer muito bem como e quando, mas a vida adquiria uma nova rotina e uma nova dimensão – muito mais intensa, feliz e gratificante.

Aos poucos minha amiga disse que foi possível retomar as atividades, projetos e hábitos que tinha antes, com seu bebezinho um pouquinho mais crescido. Eu tinha minhas inseguranças e questionamentos, mas tinha convicção que isso ocorreria comigo também.

Lembrar daquela conversa era, de alguma forma, reconfortante e alentador, me passando uma injeção de segurança e ânimo por não estar sozinha naquele mar de novidades. Como já comentei anteriormente, eu estava com os hormônios à flor da pele. Tudo era motivo para eu me emocionar, era uma manteiga derretida com qualquer programa de TV, filme, assunto mais emotivo e principalmente nas relações sociais.

Às vezes uma pequena fala em tom mais alto ou uma pessoa discordando de mim já eram razão para eu me aborrecer. Me sentia em uma espécie de TPM constante. Meu humor era como uma montanha-russa, acordava feliz e tranquila, passava o dia bem, mas ocorria um fato qualquer e era como se toda minha vida fosse acabar ou não fizesse mais sentido. Um tanto dramática. Um tanto intensa. Um turbilhão de emoções.

Uma briguinha ou discussão pequena transformavam-se rapidamente em uma grande crise existencial. Quem mais sofria com isso naquele momento era meu marido Rafael. Ele era a pessoa mais próxima e muitas vezes eu acabava descontando meu estresse nele.

A busca por uma leitura diferente naquele feriado de carnaval, que ficaria em casa era, na verdade, uma grande e simbólica tentativa de resgatar meus gostos pessoais. Um deles era o amor pela literatura, pela leitura, pela poesia e pela descoberta de novos autores e histórias.

Buscava uma literatura leve e estimulante para passar o tempo. Baixei então no tablet o livro “Cem Dias Entre Céu e Mar”, de Amyr Klink, que foi bastante assertivo para aquele propósito. Minha leitura era, na verdade, uma escuta, pois dependia do leitor de tela. Nesse sentido, acabava sempre ficando refém dos livros em formato digital – que felizmente hoje estão bem mais difundidos.

A voz que lia o livro para mim era um som sintetizado, que atualmente também era muito mais agradável ao ouvido do que já fora anos atrás. Atualmente é possível inclusive o usuário escolher a voz que lhe agrada mais. É através dos leitores de tela que utilizo o computador, o tablet e o celular. Hoje com a tecnologia acesso minha conta bancária, aplicativos de mensagens, redes sociais, livros, sites, notícias, fóruns, contatos telefônicos, emails, blogs, podcasts, etc.

Embora nem todos os sites sejam bem feitos e planejados para serem utilizados com o leitor de tela, o acesso de quem tem deficiência visual ao mundo da tecnologia já é revolucionário na comparação a uma década atrás e nos traz uma autonomia imensa. Não apenas para as diversas situações cotidianas que já mencionei, mas também para nos colocarmos no mercado de trabalho e termos uma vida profissional ativa.

Sobre o livro em questão “Cem dias entre o céu e o mar”, em pouco tempo devorei a obra, que é imensamente prazerosa. Trata-se da história real da viagem de Amyr em um pequeno barco a vela, sem nenhum outro tripulante, no ano de 1984. Ele detalhava a epopeica e desafiadora missão a que se propôs desde o porto de Luderitz, na Namíbia, até a praia da Espera, em Salvador, na Bahia.

Eu, que sempre fora apaixonada por água e pelas belezas da natureza que envolviam mar, lago, praia ou cachoeira, fui fisgada intensamente pela poesia e riqueza de detalhes que permeavam a trama.

Ao lermos o título da obra ou qualquer sinopse da mesma, já tínhamos uma boa ideia acerca do enredo. Entretanto, a narrativa concentrava-se em todos os aspectos que envolviam a navegação, desde o planejamento do barco, da rota, o estudo das correntes marítimas e as condições climáticas, o porto de partida e o porto de chegada, passando por todas as aventuras em alto-mar.

Amyr revela uma capacidade incrível de resiliência e de contorno das adversidades do percurso. Enfrentar tempestades, tubarões, peixes dourados, baleias, sol excessivo e até o capotamento do barco. Sabia como ninguém como lidar com os percalços de sua expedição, revelando-se um sábio e experiente navegador. Ademais, o viajante demonstrava um preparo psicológico imenso para passar cem dias em alto-mar, lidando com a solidão e com a passagem vagarosa do tempo de forma admirável.

O protagonista torna-se parte integrante do ecossistema que o cerca, conversando com os peixes, gaivotas e golfinhos que o acompanhavam, compreendendo seus hábitos, interpretando os sinais e comportamentos dos animais, das nuvens, do vento e das próprias ondas do mar. Passava a classificar e a nomear as ondas conforme sua intensidade e a maneira como atingiam a embarcação.

O livro é um grande poema que dança sobre as ondas dos oceanos, festejando o mar e as forças da natureza. Ao chegar à Praia da Espera, em Salvador, Amyr Klink resumia a certeza que tomava conta de sua existência: “Descobri que a maior felicidade que existe é a silenciosa certeza de que vale a pena viver”.

Apesar de eu ter buscado essa leitura por querer ler e pensar em pautas diferentes do universo infantil e da maternidade, ao terminar o livro ficava muito evidente a relação que fiz com um artigo que tratava justamente sobre as crianças de hoje em dia. Intitulado “Ninguém cresce sozinho”, de autoria de Patrícia Grinfeld.

O texto fala que “em um mundo de processados, a criança não aprende mais o que é processo”. Tratava-se de uma crítica ao estilo de vida contemporâneo e à industrialização exacerbada, em que as crianças não participavam da elaboração ou feitura de seus próprios brinquedos e brincadeiras, acostumando-se à dinâmica em que recebiam produtos prontos das mãos dos adultos.

Elas não têm, segundo o artigo, envolvimento com a criação, alienando-se de seus processos e acostumando-se a um mundo em que encontram tudo pronto. Não é raro nos depararmos com crianças que não sabem que uma casa é feita com tijolos, cimento e outros materiais, que um bolo leva farinha, ovos, açúcar ou que o leite não sai da caixinha do supermercado.

Nesse sentido, acabava me identificando muito com a ideia da autora de que as crianças precisam aprender sobre os processos da vida, de elaboração das coisas e que tudo tem seu tempo para ser processado e confeccionado. Em última instância, tudo teria um momento para ser digerido, sentimentos para serem sentidos, estresses para serem enfrentados, aprendizados para serem elaborados. Era importante aprender com os processos, que poderiam estar relacionados a materiais físicos ou a questões comportamentais em geral.

Lembrei inclusive de algumas atividades que eu fazia quando criança na escolinha, em que os professores solicitavam que levássemos material de sucata para confeccionarmos brinquedos. Caixas de sapato, garrafas pet, tampinhas, pastas de dente vazias, rolos de papel higiênico, retalhos de lã e de tecido, copinhos de iogurte, embalagens e sacolas diversas eram matéria-prima para uma infinidade de itens, como aviõezinhos, carrinhos, bonecas, prédios, ruas e até cidades inteiras.

Após a construção de nossos brinquedos com as sucatas, era preciso esperar muitas vezes a cola ou a tinta que usávamos para colorir, secar. Aprendíamos a respeitar o tempo necessário para podermos de fato brincar com nossas produções, que nos enchiam de orgulho e alegria. Era um momento de expectativa e que trazia grande aprendizado sobre os processos envolvidos.

Rememorava essas atividades da infância com nostalgia e saudosismo. Inclusive comentei com o Rafael que queria muito brincar com a Natália de montar e criar brinquedos utilizando coisas simples do dia a dia que jogamos fora no lixo seco. Faremos uma grande oficina de criação de brinquedos em casa!

Eu, na verdade, em muitos aspectos me identificava com a educação “à moda antiga”, se é que poderia chamar assim. Eu era contrária, por exemplo, ao excesso de celular, tablets, televisão, computador e videogame para as crianças. Sabia que não poderia impedir Natália de ter contato com a tecnologia e que inclusive era importante que aprendesse, mas eu era contra entreter os filhos o tempo todo com esses recursos como ocorria em muitas famílias.

A partir do texto de Patrícia Grinfeld e do livro de Amyr Klink pude repensar sobre os diversos processos da vida. A leitura da obra de Klink foi para mim emblemática, porque demonstrava a busca não apenas pela linha de chegada ao litoral baiano, mas o sabor da viagem, das aventuras e de cada etapa que constituíram a imensa travessia.

O artigo de Patricia evidenciava a importância dos processos, fundamentalmente na infância, mas que se aplicavam para a vida toda. No fim das contas, fui buscar novas leituras com o intuito de pensar em outros temas além da maternidade, mas percebi que talvez essa tarefa já não fosse mais possível. Natália já fazia parte de cem por cento da minha vida, crescia literalmente dentro de mim. Fazia parte integral do meu coração, sentimentos, pensamentos e preocupações.

Percebi então que todos os meus olhares, objetivos e sensações já estavam voltados para a Nati. Depois que ela nascesse e nós duas já estivéssemos adaptadas à sua vida fora da barriga, eu iria resgatar meus antigos hábitos, rotinas e características, sempre ajustando-os e somando-os aos cuidados e atenção com ela.

Talvez nada jamais seja novamente como antes – e que bom que as coisas mudam e estão sempre em transformação! Todas as minhas leituras e indagações dali para frente seriam inevitavelmente permeadas por essas pautas. E isso representa uma nova perspectiva de vida, com uma nova dimensão e significado.

A vida não é uma linha de chegada, mas um processo. Meu foco dali em diante não seria ver a Natália formada na faculdade, trabalhando e com sua própria casa – embora, sim, eu fosse torcer por isso e pelo sucesso dela – mas sim era vivenciar e aproveitar cada etapa, desde os primeiros mesinhos de vida, cada descoberta, cada palavra pronunciada, cada sílaba aprendida, cada sorriso. Queria curtir suas gargalhadas, os primeiros dentinhos, os primeiros passos, as brincadeiras e descobertas, tudo deveria ser saboreado a seu tempo.

Era engraçado, e ao mesmo tempo surpreendente, mas eu – que sempre fora muito ansiosa – não estava querendo apressar a gestação. Quando me perguntavam se eu estava doida para que a bebê nascesse, dizia que estava tranquila com a espera. Possivelmente porque quanto mais o tempo passasse devagar, mais calma eu teria para me preparar para sua chegada. Talvez porque eu ainda tivesse uma série de coisas na casa e em minha própria cabeça que eu queria arrumar para me sentir mais tranquila e preparada.

Muitas mães me diziam para curtir a fase da gestação e da barriga grande porque depois eu teria saudades. Me olhava no espelho e me sentia linda. E nossa, nove meses parecem muito tempo, mas quando estamos vivenciando uma série de mudanças e transformações esse período parece voar. Por isso, queria dar tempo ao tempo, respeitando o desenvolvimento da nossa Natália e também a minha transformação e do Rafael como mãe e pai dela.

Sarau e Lançamento do livro Histórias de Baixa Visão ocorre dia 29 de maio no Centro Cultural da UFRGS

A obra Histórias de Baixa Visão, organizada pela jornalista e técnica administrativa da UFRGS Mariana Baierle, trata-se de uma coletânea escrita por 23 autores com deficiência visual. Os autores são pessoas cegas ou com baixa visão que contam suas experiências e trajetórias de vida em textos no formato de crônicas e relatos autobiográficos. Não se constitui de um livro acadêmico ou técnico sobre o tema, sendo o foco principal as vivências e situações empíricas trazidas pela voz de quem se relaciona com o mundo sem poder contar plenamente com o sentido da visão e em diferentes contextos: escola, família, grupo de amigos, vida profissional, formação acadêmica, relacionamentos, enfrentamento de barreiras de toda ordem, preconceito e desconhecimento por parte da sociedade. No dia 29 de maio de 2019 (quarta-feira) faremos um grande Sarau e Lançamento da obra no Centro Cultural da UFRGS, campus Central, das 19h às 22h, com a presença de oito autores.

Na oportunidade, cada autor apresentará um trecho de seu capítulo. Haverá um bate-papo com a plateia, em que o público poderá fazer perguntas e os autores irão compartilhar suas experiências de vida, formas de lidar com a deficiência visual, bem como dar orientações e dicas sobre abordagens mais adequadas para quem nunca teve contato com pessoas com deficiência. Haverá ainda sessão de autógrafos no encerramento da atividade. O livro será comercializado no local, com pagamento apenas em dinheiro. O valor referente aos direitos autorais é revertido em doações de exemplares para escolas e bibliotecas públicas de todo o país. Teremos água e café, pedimos que traga sua caneca para evitarmos o uso de copos plásticos e cuidarmos do nosso Planeta!

O título busca contribuir com a construção de uma sociedade mais plural e respeitosa com as diferenças. Trata-se de um importante instrumento na divulgação da baixa visão e na ampliação da consciência sobre essas questões. A publicação conta com o apoio da Associação de Cegos do RS (ACERGS), sendo publicada pela primeira vez em 2017 de forma alusiva ao aniversário de 50 anos da entidade. Em 2018 lançamos a 2ª edição – Revista e Ampliada, com o acréscimo de sete novos autores, durante o VIII Congresso Brasileiro de Educação Especial, ocorrido na Universidade Federal de São Carlos (UfsCar). A 2ª edição ainda não foi lançada em Porto Alegre, sendo a atividade no Centro Cultural da UFRGS uma oportunidade única para trocas, tanto para os autores quanto para a comunidade universitária. Nosso objetivo não é apenas levar o livro até diferentes espaços e ambientes, mas principalmente promover momentos onde os autores possam contar sobre suas histórias, participação no livro e promover o diálogo com o público, mobilizando e sensibilizando a população para nossas demandas. Queremos evidenciar o protagonismo das pessoas com deficiência e a necessidade constante da sociedade, Universidade e todos os meios sociais estarem preparados em termos de acessibilidade e acolhimento para receber bem, dar as devidas oportunidades e condições de ser e estar no mundo àqueles que, por qualquer razão, fogem aos padrões da dita “normalidade”.

Para mais informações visite nossa página no Facebook: Livro Histórias de Baixa Visão. Para aquisição do livro físico ou versão digital para tabletes e smartphones acesse o: www.editoracrv.com.br. A versão digital é compatível com leitor de tela e zoom para pessoas com deficiência visual.

SERVIÇO

O quê: Sarau e Lançamento da obra Histórias de Baixa Visão – 2ª Edição Revista e Ampliada

Quando: 29 de maio de 2019 (quarta-feira)

Horário: das 19h às 22h

Local: Centro Cultural da UFRGS –Rua Eng. Luiz Englert, 333 – Campus Central – Porto Alegre/RS – Observação: é possível chegar até o local pela entrada da Av Paulo Gama,110, quase esquina Av Osvaldo Aranha ou pela Sarmento Leite, 320

Facebook: Livro Histórias de Baixa Visão:

Dica de leitura: “Becos da Memória” (Conceição Evaristo)

Uma literatura dotada de intenso realismo e profundidade. A narrativa de Conceição Evaristo parece detalhar fotograficamente o universo da favela e das personagens da obra. A leitura quase me permitiu escutar o cantarolar de Vó Rita, seu riso fácil, sentir seus braços gordos e fartos em um gostoso abraço cheio de afeto; desfrutar da companhia de Bondade, que, de visita em visita, colhia sorrisos por onde passava; escutar a vontade de resistir e os ensinamentos de Negro Alírio. São inúmeras as histórias de vida de Maria Nova, Maria Velha, Dora, Ditinha, Jorge Balalaica, Cidinha Cidoca, entre tantos outros personagens – alguns sequer sem nome, tão insignificantes quanto suas próprias existências.

São histórias que se encontram e desencontram por entre os becos da favela, que se passam ora na torneira de cima, ora na torneira de baixo, ora no barraco de um, ora no barraco de outro. São crônicas que, somadas, compõem o romance, como se cada episódio fosse um dos becos da favela. A soma de todos os relatos cotidianos, no labirinto de pobreza, misérias e desesperanças, estruturam o romance, formando o emaranhado mapa da favela.

O posfácio “Costurando uma colcha de memórias”, de Maria Nazareth Soares Fonseca, observa que a obra permite a escuta do silêncio imposto aos marginalizados através de uma história narrada por suas próprias vozes. O livro expõe as vidas subterrâneas de homens e mulheres na luta contra a fome, bem como as vidas de crianças que precisam crescer precocemente para ajudar as famílias. Entre o barraco e o barranco, Conceição Evaristo nos permite conhecer os pedaços e fragmentos de vidas mal vividas.

Narrativas envolvendo diferentes núcleos familiares apresentam todas o mesmo pano de fundo: o “desfavelamento”, ou seja, processo que pouco a pouco expurga os moradores dali. Em nome da urbanização, do progresso e de uma infinidade de outras questões, a transferência deles ocorria como a de animais embolados na boleia de caminhões. Eram levados para rincões distantes. Cada família ia para um canto diferente, tentar a própria sorte, em um mundo sem esperança de uma realidade melhor.

As autoridades ofereciam dinheiro ou material de construção e um terreno para que as famílias deixassem o local. Não poderiam demorar para ir embora. Havia pressa pela desocupação da área. O caminhão viria recolher as trochas com as poucas roupas, as telhas, os papelões, os pinicos, as caixas, os fogareiros. A favela era a única referência para a maioria deles, que moraram ali a vida inteira, trabalhando nos arredores, tendo nos limites do morro a maior perspectiva vislumbrada para as próprias vidas.

Sem educação, sem escola, sem comida, sem roupas, sem cobertores, sem cama, sem água encanada, sem dignidade, sem trabalho, sem acreditar em nada, precisavam ter forças para recomeçar em outro local. Uma nova vida em um local muito mais distante, sem referências, sem nenhum suporte, sem nenhum rumo. Então recomeçar o quê?

Um livro que me fez resgatar a reflexão sobre as diversas formas de se contar e de se apresentar as histórias da humanidade, de um povoado, país ou continente. A narrativa que nos é contadas sobre guerras, invasões, colonizações, dominações, dizimações e açoitamentos obedece invariavelmente a lógica “oficial” dos livros didáticos de História que jamais problematizam a perspectiva dos “vencidos” ou dos dominados. No caso dos índios e povos que habitavam a América Latina antes da chegada dos europeus, por exemplo, sempre escutamos a perspectiva que apresenta a América como “colonizada” pelos portugueses ou espanhóis. E qual a história dos que ali viviam? Quais suas crenças, tradições, comportamentos? Como se sentiram com a dominação dos europeus? Como foram tratados? Quais as implicações disso? Por que a história é contada apenas a partir da chegada dos ditos colonizadores?

“Becos da Memória” revela a aproximação – e por que não a equivalência – entre a senzala e a favela. Agora homens ditos livres. Mas livres para quê? De que maneira? O que a vida lhes poderia permitir? A maioria dos homens e mulheres insistiam em viver, não se entregavam fácil. Alguns, porém, preferiam abreviar a dor e terminar mais rapidamente com aquela vida sofrida. A dita “liberdade” não lhes trazia qualquer escolha ou possibilidade de mudança. O desfavelamento não lhes trazia qualquer melhoria, qualquer redução no sofrimento. Pelo contrário, todos os laços são rompidos, o afeto construído é quebrado, a rede de apoio, as estratégias de sobrevivência, o companheirismo de todas as manhãs das lavadeiras, as brincadeiras das crianças, nada disso persiste.

Os tratores, que abrem clareiras e aplainam o terreno em nome do desenvolvimento, são o símbolo da morte, da exclusão, da miséria, do apagamento do único espaço que consideravam seu: a favela. Dia após dia, as máquinas seguem violentamente aplainando o terreno, destruindo os becos, retirando as características do terreno acidentado. Os “bichos pesadões”, com o barulho ensurdecedor de amargura, aplainam a terra que antes sustentava casebres e histórias de tanta gente. Semana após semana, mês após mês, a favela vai ficando menor, todos vão indo embora. Alguns meninos morreram brincando em volta dos tratores. Alguns adultos morreram de desgosto, de aflição, de angústia por ter de ir embora e não ter um destino. Enterrados como indigentes, não havia dinheiro ou dignidade sequer para a morte.

Mas o progresso… O progresso…. O desenvolvimento… O desenvolvimento… É preciso terminar com as favelas. É preciso retirá-las dos olhos de quem não pode vê-las, mandar aquela gente pobre, preta, suja e fedorenta embora. Tinham que sair dali, do meio da área nobre da cidade. Tudo estaria resolvido. E seguem os tratores patrolando o terreno e a subsistência daqueles que ali viviam. Segue o barulho da violência e da agressão que apenas os moradores dali escutam. O campinho da pelada do final de semana não existe mais, os barracos não existem mais, o boteco da pinga também não existe mais, as torneiras foram desativadas e arrancadas, o sopro de vida e de resistência diminui a cada instante. As despedidas são pesadas e tristes. Cada um que vai embora é uma fagulha de esperança que se apaga.

O posfácio “A força das palavras, da memória e da narrativa”, de Simone Pereira Schmidt, evidencia que a obra nos permite aprender um pouco do que é ser negro no Brasil e do que significa ser branco em uma sociedade racista. O trabalho de sol a sol das lavadeiras, em constante esforço pela sobrevivência, é comparado ao trabalho nas senzalas. A geografia dos becos remete novamente à escravidão. O passado colonial e o presente com a herança colonial se fundem numa continuidade sem fim. O regime escravocrata, agora chamado de liberdade, impõe as mesmas regras e condições àquelas pessoas. A saída da favela para outro local pretensamente mais “adequado”, também não representa qualquer mudança real.

Conceição Evaristo, uma autora que até então eu desconhecia, denuncia toda essa realidade, em uma literatura nada ficcional. Ao conhecer a obra, não tive dúvidas de que estava diante de uma das maiores escritoras de literatura brasileira e mundial de nosso tempo, que passo a admirar e respeitar profundamente, a qual recomendo a todos.

Resenha da obra “Ser André Werkhausen Boone”

Eu considero que um livro é bom quando chego ao ponto de não querer terminá-lo para prorrogar o tempo em contato com a obra. Se acabo optando por e interromper a leitura para sobrarem páginas para o dia seguinte é porque o volume é realmente incrível. Foi assim com a obra “Ser André Werkhausen Boone” (Editora Amstad, Nova Petrópolis, 2018), de autoria do próprio André Werkhausen Boone. O André é um dos autores da nossa coletânea Histórias de Baixa Visão, a qual tive a alegria de organizar. Participou de nossa primeira edição (2017) e da 2ª edição – Revista e Ampliada (2018). Sempre conversamos por whatsapp e trocávamos ideias literárias. Eu sabia que ele estava escrevendo um livro próprio contando sua trajetória e relação com a deficiência visual. Tinha certeza que seria uma obra importante e que acrescentaria muito nesse campo. Entretanto, mesmo já tendo conversado bastante com o ele e até participado de alguns eventos e lançamentos do nosso livro juntos, não conhecia detalhes de suas vivências que só foram possíveis compreender a partir da leitura da obra completa.

André era um jovem considerado “normal”, dentro do senso comum do que seria uma pessoa sem deficiência. Durante o Ensino Médio em Nova Petrópolis, cidade pacata da serra gaúcha, começa a sentir sintomas de dores no joelho que não passavam e acabam se espalhando pelo corpo todo. Sem entender o que acontecia consigo, buscando explicações de médico em médico, de hospital em hospital, dependendo de consultas e exames que demoravam e respostas que não vinham, vivenciou todos os problemas de acesso a saúde pública em uma pequena cidade do interior. Foi ao lado da mãe, dona Silvani – uma mulher batalhadora, que ganhou todo o meu respeito e admiração a partir da obra – que percorreu hospitais de Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre em busca de respostas enquanto seu quadro de saúde só se agravava.

A partir da leitura do livro você vai entendendo, junto com as memórias do autor, como André sai de uma condição de tetraplegia, sem controle de braços e pernas, sem sensibilidade e força nos membros, sem controle das necessidades fisiológicas e uma infinidade de medos e incertezas – inclusive sobre a continuidade da própria vida – para a condição de “somente cego”. Tornar-se uma pessoa cega, mas caminhando, escutando, se deslocando, sem alterações cognitivas, acaba configurando-se como uma importante conquista nesse contexto.

Reconstruindo e ressignificando toda sua existência, André – já na condição de cego e no auge de sua adolescência – precisa se afastar da escola para passar pela reabilitação. Teria que aprender a fazer as mesmas coisas que fazia antes, agora sem a visão. Muitos tropeços e dificuldades no caminho. Problemas de falta de acessibilidade de toda ordem: no transporte público, calçadas, sinaleiras, orelhões e objetos aéreos pela cidade atrapalhavam sua locomoção e autonomia. Com pitadas de bom humor e sem nunca desistir, o autor cria um novo significado para a palavra “testar”. Segundo ele, significaria a partir de então “colidir com a testa”.

A leitura de “Ser André Werkhausen Boone” é um convite a se repensar nossos posicionamentos diante das adversidades da vida. A superação de questões graves de saúde, a crença em soluções mesmo quando os médicos diziam que nada poderia ser feito, a vitória diante de abalos emocionais profundos, contornando a depressão e a ansiedade. A autodeterminação e jamais a resignação. A luta pela vida em todas as suas dimensões e com toda a intensidade possível e impossível. Passei a admirar ainda mais o autor e indico a leitura da obra para todos.

Do ponto de vista literário, o livro divide-se em capítulos curtos, bem estruturados, que terminam deixando gosto de quero mais. A continuidade está no capítulo seguinte e assim sucessivamente, de forma que a leitura de mais de 200 páginas é muito rápida e fluida. Além do aprendizado enquanto ser humano, o autor traz um retrato muito fiel da realidade de sua cidade, das rotinas e problemas do interior, de sua escola e de seu bairro Pousada da Neve. Aprendi mais sobre o cotidiano dos “neopetropolitanos”, nome até então desconhecido por mim para designar os nativos dessa encantadora cidade. Conhecia Nova Petrópolis apenas pelo ponto de vista turístico, mas nunca tinha tido a perspectiva de quem mora e vivencia o local para além das atrações destinadas a visitantes, bem como das comidas e bebidas convidativas do inverno gaúcho.

O contraste entre três cidades, de pequeno, médio e grande porte – no caso Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre – é um ponto amplamente explorado na obra pelo olhar apurado e atento do autor, que – em paralelo a sua história e drama pessoal retrata o contexto social em que vivia e apresenta o universo de sua família e das dificuldades enfrentadas por todos. Dona Silvani, trabalhadora de uma fábrica de calçados, precisava o acompanhar nas viagens e médicos, sem abandonar o emprego. Foi o caminho até o trabalho da mãe sozinho uma das grandes vitórias na busca por recuperar sua autonomia para o deslocamento após a perda da visão. André, que já conhecia as localidades quando enxergava, redescobre seus espaços, caminhos, sons, cheiros e movimentações após tornar-se uma pessoa cega.

A vida tranquila, as árvores frutíferas, as galinhas no pátio de casa, a decisão de não levá-las a panela por tornarem-se de estimação, o conhecimento de toda a vizinhança pelo nome, a visita aos mais chegados. São elementos cotidianos e marcantes da vida no interior, mas impraticáveis nas grandes cidades. Ele depara-se ora com o saudosismo e a nostalgia de sua cidadezinha, ora com a admiração, o encantamento e o entusiasmo quando se deslocava para os grandes centros em busca de tratamento e respostas aos problemas de saúde que o acometiam. O bater de sua bengala pelos obstáculos das cidades grandes, o emaranhado de comércios pelo centro de Porto Alegre, os bares e restaurantes, as infinitas vozes, barulhos de ônibus, buzinas, camelôs, grandes avenidas para atravessar. Situações já desafiadoras para qualquer pessoa que vive no interior e visita uma cidade grande, mas ainda um desafio maior quando se faz tudo isso sem enxergar.

O título me deixou emocionada em diversos momentos, por me identificar com muitos pontos trazidos pelo autor e também por conhecer tantas questões diferentes e que fugiam completamente da minha realidade. André Werkhausen Boone traz a importante lição de que “sem sonhos, não há lutas”. Não se considera um vencedor, mas “um constante lutador”. Um livro para ler, reler, emprestar e divulgar aos amigos. Disponível nas versões impressa e digital, acessível para pessoas com deficiência visual. Para aquisição, entre em contato através do whatsapp (54) 98127 8170 ou email w.booneandre@gmail.com.