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VAQUINHA PARA VIABILIZAÇÃO DO LIVRO “MATERNIDADE E DEFICIÊNCIA VISUAL: DO SONHO AO NASCIMENTO DE NATÁLIA” (por Mariana Baierle)

Caras amigas, amigos, leitoras e leitores!

Foi com muito esforço e dedicação que terminei de escrever e revisar o livro “Maternidade e deficiência visual: do sonho ao nascimento de Natália”. Sem falsa modéstia acredito que o conteúdo está muito legal e você vai gostar. Você vai rir, vai chorar, vai se emocionar com todo o processo que envolveu a chegada de nossa filha amada.

No livro relato desde a vontade de engravidar, a descoberta do teste positivo, a gestação como um todo e o início de nossa nova vida, minha e do meu marido Rafa, como mamãe e papai dessa menina encantadora que veio para encher de amor e alegria as nossas vidas. Sou eu uma mamãe de primeira viagem, com cerca de cinco por cento de visão, meu marido também com deficiência visual. Todo o último trimestre de gestação, o nascimento e início da vida da filhota são permeados pela pandemia do Corona Vírus que assola o Brasil e o mundo. Você pode imaginar que os percalços desse processo todo não são poucos.

Relato na obra as situações emocionantes que vivemos; as dificuldades, expectativas e desafios; o isolamento social; o cancelamento do chá de fraldas, das visitas na maternidade e na nossa casa; as mudanças na minha condição de apenas filha para a de mãe; os preconceitos e estigmas enfrentados em função da deficiência visual; as adaptações que são necessárias ao longo da gestação e após o nascimento; a falta de acessibilidade para um casal com baixa visão desde o momento de ir para o hospital ganhar a filhota; as angústias, aflições e o turbilhão hormonal que toma conta da mãe; as mudanças físicas e psicológicas, entre uma infinidade de temas que perpassam esse momento ímpar da minha vida.

Enfim, o tema da maternidade por uma mãe com deficiência visual é algo que gera tabus e muitos preconceitos. O livro promove esse debate e esclarecimento a partir da minha própria vivência, mas traz angústias e conflitos comuns também a outras mulheres que passam por situações semelhantes.

Após muita pesquisa já decidi a editora que será parceira e abraça esse projeto lindo comigo. A obra, que já está prontinha para ser enviada para publicação, será lançada pela Editora Gregory (www.editoragregory.com.br), de São Paulo. Terá cerca de 230 páginas. Tem prefácio escrito pela jornalista, professora e minha amiga Gladis Maia. Estará disponível nas versões impressa e digital.

A previsão de lançamento é para o primeiro semestre de 2021, ainda sem data definida porque inicialmente necessito juntar grana para o investimento. Ai é que chego no ponto crucial dessa empreitada. Você que me lê e ficou curiosa ou curioso com o livro e gostaria de me auxiliar a realizar esse sonho pode fazer a diferença para que esse projeto saia do papel, comprando antecipadamente um exemplar da obra.

Não tenho nesse momento como arcar com os custos do investimento para publicação e, por isso, o apoio das pessoas queridas que me acompanham vai fazer toda a diferença. Se você tem um familiar, amiga ou amigo que possa presentear, aproveite para adquirir um exemplar antecipadamente também, contribuindo com essa corrente para que o quanto antes possamos ter a publicação disponível.

COMO POSSO ADQUIRIR UM EXEMPLAR ANTECIPADAMENTE E AUXILIAR A VIABILIZAR O LIVRO?

É bem simples: com R$45,90 (quarenta e cinco reais e noventa centavos) você adquire um exemplar antecipado do livro “Maternidade e deficiência visual: do sonho ao nascimento de Natália”. Assim que a obra ficar pronta você a receberá autografada em casa. Esse valor é promocional para a compra antecipada, já incluindo as despesas postais para envio para qualquer lugar do Brasil. E, acima de tudo, estará me ajudando para que o título não fique na gaveta e toda essa história repleta de muito amor e desafios possa ser compartilhada com mais e mais pessoas.

Vou receber os pagamentos preferencialmente através do Pix em minha conta, cuja chave é “51 98433 7368”. Você faz o pagamento e na sequência envia para o meu email tresgotinhas@gmail.com o seu nome completo, comprovante, o dia e horário do pagamento, o endereço e CEP para recebimento da obra. Caso o pagamento pelo Pix tenha sido feito por outra pessoa, por favor informe também no email o nome de quem depositou para que eu possa identificar você. No título do email coloque apenas o seu nome completo.

Caso não utilize o Pix e deseje fazer o pagamento por transferência bancária, entre em contato também por email para que eu forneça os meus dados bancários.

O livro será enviado, autografado pela autora, pelos Correios ainda no primeiro semestre de 2021 para o endereço que você indicar. Através do meu blog (www.tresgotinhas.com.br) você ficará sabendo todas as novidades sobre quando eu atingir o valor necessário para viabilização da obra, previsão de lançamento, data de envio para os apoiadores, eventos e debates envolvendo o livro etc.

A AUTORA

Para quem não me conhece, meu nome é Mariana Baierle. Sou jornalista pela PUCRS, mestre em Letras pela UFRGS. Tenho 35 anos, sou ativista no segmento das pessoas com deficiência, apaixonada pela literatura e escrita. Atuo como técnica-administrativa no Instituto de Letras da UFRGS, realizo consultoria em audiodescrição, edito o blog Três Gotinhas, sou autora e organizadora do livro Histórias de Baixa Visão. Estou ansiosa pela publicação de minha nova obra. Tenho uma doença degenerativa na retina chamada retinose pigmentar e atualmente tenho cerca de cinco por cento de visão.

Desde já agradeço imensamente a todas e todos que me auxiliarem nessa jornada pelo nascimento desse lindo projeto. Tenho certeza que irão mergulhar em uma prazerosa leitura! Um forte abraço

DO SONHO AO NASCIMENTO

Quero compartilhar com você, querido leitor, uma grande novidade. Para quem ainda não sabe, o sonho de ser mãe se concretizou na minha vida. Isso mesmo, minha filha Natália nasceu no dia 10 de junho desse ano. Ela é linda e está com quase quatro meses. Você deve imaginar também que a correria anda enorme e por isso, a dificuldade em manter o blog atualizado.

Mas desde o início da gestação não deixei de escrever. Essa é a segunda grande novidade. Desde que descobri que estava grávida em outubro do ano passado comecei a escrever um grande relato que irá em breve ser publicado em livro.

Nas cerca de 160 páginas falo sobre o sonho da gestação, a gravidez em si, o acompanhamento pré-natal, minha deficiência visual e a decisão de ser mãe, as adaptações necessárias em minha rotina e na preparação para a chegada da nenê, os preconceitos enfrentados já desde o início da gestação, os maiores desafios etc. Tudo isso em um contexto em que parte da minha gestação foi permeada pela pandemia do Corona Vírus e pelo isolamento social. O chá de fraldas, as visitas na maternidade e na nossa casa não puderam acontecer.

A filhota nasceu forte e saudável em meio a esse contexto adverso que o mundo enfrenta. No livro conto também os receios com relação a ganhá-la nesse período, os auxílios que eu e meu marido (que também tem deficiência visual) recebemos, entre outros aspectos. Então a obra é permeada por todos esses pontos, o que acredito que sejam pautas que chamem atenção de leitores que queiram conhecer realidades diversas enfrentadas durante o isolamento social, além de detalhes da preparação de uma mamãe de primeira viagem com deficiência visual para a chegada de seu maior tesouro.

Estou em fase de revisão final do livro antes de enviá-lo para publicação. Como ainda não fechei o título, a editora e data de lançamento, vou deixá-lo na curiosidade e trarei mais informações sobre tudo isso em publicações posteriores. Para não dizer que não publiquei nenhum trechinho da obra aqui no Três Gotinhas, separei um capítulo inteiro para brindar quem me acompanha por aqui. O capítulo que publico abaixo foi escrito em fevereiro deste ano, ainda antes da pandemia assolar o Brasil, quando minha vida ainda seguia uma rotina relativamente “normal”.

Na metade do segundo trimestre da gestação entramos em quarentena e passei ao trabalho remoto. Embora na época acreditasse que poderia voltar ao trabalho presencialmente antes da licença-maternidade, logo percebi que isso seria impossível e estou em casa, no fim das contas, desde março deste ano.

Tomara que vocês gostem do capítulo e a curiosidade pelo texto completo fique aguçada. Boa leitura!

LEITURAS E DIVAGAÇÕES

Durante o feriadão de carnaval no final do mês de fevereiro, quando eu já estava com vinte e quatro semanas de gestação, resolvi dar um tempo para minha mente e pensamentos até então completamente absortos no universo da maternidade e buscar uma leitura diferente.
Estava um pouco saturada de assistir vídeos, podcasts e comentários exclusivamente sobre amamentação, quartinhos de bebê, fases do desenvolvimento da criança, entre outros tópicos relacionados.

Todos esses temas eram de imensurável interesse desde o início da gestação, mas confesso que em determinado momento começava a achar tudo um pouco enfadonho e me questionava se eu estaria perdendo minhas outras identidades, gostos, características e personalidade.

Sabia racional e conscientemente que não, que seria a mesma mulher, acrescida agora de uma identidade a mais, pois me tornava também a mãe da Natália. Contudo, a maternidade era uma novidade tanto para mim quanto para os outros na relação comigo.

Percebia, de forma bastante nítida, que as pessoas somente puxavam assuntos comigo relacionados à gestação, aos preparativos para a chegada da nenê, sobre como seria o parto etc. Eram pautas inevitáveis e geralmente adorava conversar sobre isso.

Entretanto, eu continuava fazendo as mesmas coisas de antes: trabalhava, me preocupava com minha vida profissional e como seria dali para frente, saía de casa, tinha grupos de amigos, família, marido, casa para administrar, exercícios físicos para fazer, conta bancária e preocupações diversas. Assim, considerava um pouco estranho não conversar mais sobre assuntos que costumava falar anteriormente, tendo em vista que os outros aspectos da minha vida seguiam, na medida do possível e com algumas adaptações, como antes.

Nessa fase lembrei muito do que conversei certa vez com uma amiga sobre essas inquietudes e divagações. Ela dizia que parecia que tinha deixado de ser ela mesma por um tempo, que durante a gestação e nos primeiros meses do nenê ninguém se referia a ela com os mesmos assuntos que se referiam anteriormente, que inclusive no seu próprio aniversário davam presentes para seu bebê e queriam o tempo todo paparicar o filhote.

O fato dos amigos e familiares demonstrarem afeto pela criança era ótimo, mas seria fundamental também a manutenção da boa autoestima da mãe. Se a mulher não tivesse bem consigo mesma também não conseguiria cuidar do bebê com a dedicação e o zelo que precisava. Dar conta e ter espaço para os outros aspectos da vida era saudável e necessário.

Naquele momento as palavras da minha amiga caíam como uma luva para representar tudo o que eu sentia. Certa noite, sem entender bem o porquê, chorei desenfreadamente. Chorei como uma criança, talvez porque tivesse muitos medos e angústias sobre como seria a sensação e a responsabilidade de cuidar de uma criança.

Talvez por sentir que deixava minha posição de filha de vez para trás e agora eu era mamãe.

Talvez porque tudo aquilo que eu desejara muito estivesse acontecendo e eu não soubesse ainda como lidar.

Talvez porque eu mesma esperasse muito de mim naquele momento, me cobrava respostas e até uma experiência que eu não tinha.

Talvez porque eu quisesse demonstrar força e segurança, me esforçando para encobrir meus medos dos outros e de mim mesma.

Talvez porque eu tivesse medo de não dar conta de alguns outros projetos profissionais que eu tinha idealizado, como o plano de fazer um doutorado, que havia sido temporariamente suspenso.

Talvez , e este talvez tenha sido o maior motivo, por ficar me perguntando se eu seria uma mãe à altura das necessidades e demandas da Natália.

Chorei desenfreadamente por umas duas horas. Foi uma catarse que limpou minhas angústias e ajudou a relaxar um pouco de tantas tensões e preocupações. Sabia que eu era exigente demais comigo mesma, queria que tudo ocorresse perfeitamente, mas tinha consciência que a maternidade não seria algo que eu pudesse controlar ou prever. Teria de passar por contratempos, imprevistos e me adaptar às diferentes situações.

Sentia um turbilhão de emoções mexendo comigo. Era o corpo se transformando o tempo todo. Eram as roupas que não cabiam mais. Era a minha mente que não funcionava mais como antes. Agora eu estava o tempo todo me preocupando com tudo e pensando como eu faria as mesmas coisas de antes com uma bebezinha.

Aliás, será que eu conseguiria fazer as mesmas coisas? As mudanças eram biológicas e hormonais. Não poderia ir contra isso, sabia que faziam parte do processo. Ainda assim, era difícil e traziam uma série de desafios inclusive psicológicos.

Apenas naquele período da gestação havia entendido com profundidade o significado e a dimensão das sensações descritas por minha amiga, que passaram a tocar minha alma. Ela me contou, naquela conversa, que acreditava que o fato da mãe sentir-se em segundo plano nas relações sociais em parte era natural, porque era sem dúvidas uma mudança radical na vida de qualquer mulher e biologicamente a própria mãe sempre colocaria seu filho como prioridade.

Mas o importante era que depois de um tempo as coisas começariam a se encaixar novamente. Ela não sabia dizer muito bem como e quando, mas a vida adquiria uma nova rotina e uma nova dimensão – muito mais intensa, feliz e gratificante.

Aos poucos minha amiga disse que foi possível retomar as atividades, projetos e hábitos que tinha antes, com seu bebezinho um pouquinho mais crescido. Eu tinha minhas inseguranças e questionamentos, mas tinha convicção que isso ocorreria comigo também.

Lembrar daquela conversa era, de alguma forma, reconfortante e alentador, me passando uma injeção de segurança e ânimo por não estar sozinha naquele mar de novidades. Como já comentei anteriormente, eu estava com os hormônios à flor da pele. Tudo era motivo para eu me emocionar, era uma manteiga derretida com qualquer programa de TV, filme, assunto mais emotivo e principalmente nas relações sociais.

Às vezes uma pequena fala em tom mais alto ou uma pessoa discordando de mim já eram razão para eu me aborrecer. Me sentia em uma espécie de TPM constante. Meu humor era como uma montanha-russa, acordava feliz e tranquila, passava o dia bem, mas ocorria um fato qualquer e era como se toda minha vida fosse acabar ou não fizesse mais sentido. Um tanto dramática. Um tanto intensa. Um turbilhão de emoções.

Uma briguinha ou discussão pequena transformavam-se rapidamente em uma grande crise existencial. Quem mais sofria com isso naquele momento era meu marido Rafael. Ele era a pessoa mais próxima e muitas vezes eu acabava descontando meu estresse nele.

A busca por uma leitura diferente naquele feriado de carnaval, que ficaria em casa era, na verdade, uma grande e simbólica tentativa de resgatar meus gostos pessoais. Um deles era o amor pela literatura, pela leitura, pela poesia e pela descoberta de novos autores e histórias.

Buscava uma literatura leve e estimulante para passar o tempo. Baixei então no tablet o livro “Cem Dias Entre Céu e Mar”, de Amyr Klink, que foi bastante assertivo para aquele propósito. Minha leitura era, na verdade, uma escuta, pois dependia do leitor de tela. Nesse sentido, acabava sempre ficando refém dos livros em formato digital – que felizmente hoje estão bem mais difundidos.

A voz que lia o livro para mim era um som sintetizado, que atualmente também era muito mais agradável ao ouvido do que já fora anos atrás. Atualmente é possível inclusive o usuário escolher a voz que lhe agrada mais. É através dos leitores de tela que utilizo o computador, o tablet e o celular. Hoje com a tecnologia acesso minha conta bancária, aplicativos de mensagens, redes sociais, livros, sites, notícias, fóruns, contatos telefônicos, emails, blogs, podcasts, etc.

Embora nem todos os sites sejam bem feitos e planejados para serem utilizados com o leitor de tela, o acesso de quem tem deficiência visual ao mundo da tecnologia já é revolucionário na comparação a uma década atrás e nos traz uma autonomia imensa. Não apenas para as diversas situações cotidianas que já mencionei, mas também para nos colocarmos no mercado de trabalho e termos uma vida profissional ativa.

Sobre o livro em questão “Cem dias entre o céu e o mar”, em pouco tempo devorei a obra, que é imensamente prazerosa. Trata-se da história real da viagem de Amyr em um pequeno barco a vela, sem nenhum outro tripulante, no ano de 1984. Ele detalhava a epopeica e desafiadora missão a que se propôs desde o porto de Luderitz, na Namíbia, até a praia da Espera, em Salvador, na Bahia.

Eu, que sempre fora apaixonada por água e pelas belezas da natureza que envolviam mar, lago, praia ou cachoeira, fui fisgada intensamente pela poesia e riqueza de detalhes que permeavam a trama.

Ao lermos o título da obra ou qualquer sinopse da mesma, já tínhamos uma boa ideia acerca do enredo. Entretanto, a narrativa concentrava-se em todos os aspectos que envolviam a navegação, desde o planejamento do barco, da rota, o estudo das correntes marítimas e as condições climáticas, o porto de partida e o porto de chegada, passando por todas as aventuras em alto-mar.

Amyr revela uma capacidade incrível de resiliência e de contorno das adversidades do percurso. Enfrentar tempestades, tubarões, peixes dourados, baleias, sol excessivo e até o capotamento do barco. Sabia como ninguém como lidar com os percalços de sua expedição, revelando-se um sábio e experiente navegador. Ademais, o viajante demonstrava um preparo psicológico imenso para passar cem dias em alto-mar, lidando com a solidão e com a passagem vagarosa do tempo de forma admirável.

O protagonista torna-se parte integrante do ecossistema que o cerca, conversando com os peixes, gaivotas e golfinhos que o acompanhavam, compreendendo seus hábitos, interpretando os sinais e comportamentos dos animais, das nuvens, do vento e das próprias ondas do mar. Passava a classificar e a nomear as ondas conforme sua intensidade e a maneira como atingiam a embarcação.

O livro é um grande poema que dança sobre as ondas dos oceanos, festejando o mar e as forças da natureza. Ao chegar à Praia da Espera, em Salvador, Amyr Klink resumia a certeza que tomava conta de sua existência: “Descobri que a maior felicidade que existe é a silenciosa certeza de que vale a pena viver”.

Apesar de eu ter buscado essa leitura por querer ler e pensar em pautas diferentes do universo infantil e da maternidade, ao terminar o livro ficava muito evidente a relação que fiz com um artigo que tratava justamente sobre as crianças de hoje em dia. Intitulado “Ninguém cresce sozinho”, de autoria de Patrícia Grinfeld.

O texto fala que “em um mundo de processados, a criança não aprende mais o que é processo”. Tratava-se de uma crítica ao estilo de vida contemporâneo e à industrialização exacerbada, em que as crianças não participavam da elaboração ou feitura de seus próprios brinquedos e brincadeiras, acostumando-se à dinâmica em que recebiam produtos prontos das mãos dos adultos.

Elas não têm, segundo o artigo, envolvimento com a criação, alienando-se de seus processos e acostumando-se a um mundo em que encontram tudo pronto. Não é raro nos depararmos com crianças que não sabem que uma casa é feita com tijolos, cimento e outros materiais, que um bolo leva farinha, ovos, açúcar ou que o leite não sai da caixinha do supermercado.

Nesse sentido, acabava me identificando muito com a ideia da autora de que as crianças precisam aprender sobre os processos da vida, de elaboração das coisas e que tudo tem seu tempo para ser processado e confeccionado. Em última instância, tudo teria um momento para ser digerido, sentimentos para serem sentidos, estresses para serem enfrentados, aprendizados para serem elaborados. Era importante aprender com os processos, que poderiam estar relacionados a materiais físicos ou a questões comportamentais em geral.

Lembrei inclusive de algumas atividades que eu fazia quando criança na escolinha, em que os professores solicitavam que levássemos material de sucata para confeccionarmos brinquedos. Caixas de sapato, garrafas pet, tampinhas, pastas de dente vazias, rolos de papel higiênico, retalhos de lã e de tecido, copinhos de iogurte, embalagens e sacolas diversas eram matéria-prima para uma infinidade de itens, como aviõezinhos, carrinhos, bonecas, prédios, ruas e até cidades inteiras.

Após a construção de nossos brinquedos com as sucatas, era preciso esperar muitas vezes a cola ou a tinta que usávamos para colorir, secar. Aprendíamos a respeitar o tempo necessário para podermos de fato brincar com nossas produções, que nos enchiam de orgulho e alegria. Era um momento de expectativa e que trazia grande aprendizado sobre os processos envolvidos.

Rememorava essas atividades da infância com nostalgia e saudosismo. Inclusive comentei com o Rafael que queria muito brincar com a Natália de montar e criar brinquedos utilizando coisas simples do dia a dia que jogamos fora no lixo seco. Faremos uma grande oficina de criação de brinquedos em casa!

Eu, na verdade, em muitos aspectos me identificava com a educação “à moda antiga”, se é que poderia chamar assim. Eu era contrária, por exemplo, ao excesso de celular, tablets, televisão, computador e videogame para as crianças. Sabia que não poderia impedir Natália de ter contato com a tecnologia e que inclusive era importante que aprendesse, mas eu era contra entreter os filhos o tempo todo com esses recursos como ocorria em muitas famílias.

A partir do texto de Patrícia Grinfeld e do livro de Amyr Klink pude repensar sobre os diversos processos da vida. A leitura da obra de Klink foi para mim emblemática, porque demonstrava a busca não apenas pela linha de chegada ao litoral baiano, mas o sabor da viagem, das aventuras e de cada etapa que constituíram a imensa travessia.

O artigo de Patricia evidenciava a importância dos processos, fundamentalmente na infância, mas que se aplicavam para a vida toda. No fim das contas, fui buscar novas leituras com o intuito de pensar em outros temas além da maternidade, mas percebi que talvez essa tarefa já não fosse mais possível. Natália já fazia parte de cem por cento da minha vida, crescia literalmente dentro de mim. Fazia parte integral do meu coração, sentimentos, pensamentos e preocupações.

Percebi então que todos os meus olhares, objetivos e sensações já estavam voltados para a Nati. Depois que ela nascesse e nós duas já estivéssemos adaptadas à sua vida fora da barriga, eu iria resgatar meus antigos hábitos, rotinas e características, sempre ajustando-os e somando-os aos cuidados e atenção com ela.

Talvez nada jamais seja novamente como antes – e que bom que as coisas mudam e estão sempre em transformação! Todas as minhas leituras e indagações dali para frente seriam inevitavelmente permeadas por essas pautas. E isso representa uma nova perspectiva de vida, com uma nova dimensão e significado.

A vida não é uma linha de chegada, mas um processo. Meu foco dali em diante não seria ver a Natália formada na faculdade, trabalhando e com sua própria casa – embora, sim, eu fosse torcer por isso e pelo sucesso dela – mas sim era vivenciar e aproveitar cada etapa, desde os primeiros mesinhos de vida, cada descoberta, cada palavra pronunciada, cada sílaba aprendida, cada sorriso. Queria curtir suas gargalhadas, os primeiros dentinhos, os primeiros passos, as brincadeiras e descobertas, tudo deveria ser saboreado a seu tempo.

Era engraçado, e ao mesmo tempo surpreendente, mas eu – que sempre fora muito ansiosa – não estava querendo apressar a gestação. Quando me perguntavam se eu estava doida para que a bebê nascesse, dizia que estava tranquila com a espera. Possivelmente porque quanto mais o tempo passasse devagar, mais calma eu teria para me preparar para sua chegada. Talvez porque eu ainda tivesse uma série de coisas na casa e em minha própria cabeça que eu queria arrumar para me sentir mais tranquila e preparada.

Muitas mães me diziam para curtir a fase da gestação e da barriga grande porque depois eu teria saudades. Me olhava no espelho e me sentia linda. E nossa, nove meses parecem muito tempo, mas quando estamos vivenciando uma série de mudanças e transformações esse período parece voar. Por isso, queria dar tempo ao tempo, respeitando o desenvolvimento da nossa Natália e também a minha transformação e do Rafael como mãe e pai dela.

Resenha da obra “Livre para voar (Ziauddin Yousafzai e Louise Carpenter)

Ziauddin Yousafzai tem cinco irmãs e um irmão. A família, composta por sete filhos, orgulha-se dos dois filhos homens, valorizando e superestimando todas as conquistas deles, ao passo que as vozes e identidades femininas são caladas e ignoradas. Ziauddin manifesta desde criança uma dificuldade na fala, que resulta em uma gagueira. Ironicamente, ele e o irmão – ambos com dificuldades para falar – são mais escutados e reconhecidos pela família que as irmãs. Elas, sem nenhuma dificuldade para se comunicar, são invisibilizadas dentro da própria casa e na sociedade paquistanesa como um todo. Apesar de viver nesse contexto, Ziauddin tem uma visão de mundo diferenciada em meio à sociedade em que está inserido. Coloca-se em uma posição questionadora e inconformado com a falta de voz e de espaço atribuído às mulheres de sua família, como sua mãe, irmãs, tias etc. É um homem que acredita no poder do estudo e da dedicação, defendendo o conhecimento acessível a todos, sejam homens ou mulheres.

Quando criança, mesmo com toda a dificuldade na fala, decide participar de competições de oratória em sua escola – muito comuns na época. Outras crianças zombam dele, perguntando se ele iria mesmo participar do concurso. Ziauddin, com auto-confiança e determinação, surpreende a todos e é o primeiro colocado. Queria impressionar seu pai, quem o incentivava muito para que estudasse e se dedicasse. O sonho do pai era vê-lo formado em Medicina. Entretanto, esse era o sonho de seu pai, não o seu.

Nas sociedades patriarcais as crianças são vistas como propriedade dos pais. Ziauddin não queria ser propriedade de seu pai, queria ter suas próprias ideias, seu próprio caminho, querias ser livre para voar. Queria ser professor, profissão pouco valorizada e reconhecida, mas amada por ele. Era apaixonado pelo estudo e encantado pelas possibilidades que a educação poderia lhe trazer e trazer ao mundo. Sonhava em abrir uma escola, sonho que mais tarde pode realizar, abrindo uma escola de ensino fundamental no Vale do Swat onde mora com a esposa e os filhos.

Em sua infância, ele, o irmão e o pai comiam primeiro e ficavam com as melhores fatias de carne. Depois, a mãe e as irmãs sentavam-se à mesa, ficando com o que havia sobrado e também encarregando-se de todos os afazeres domésticos. Comer com mulheres na mesma mesa era proibitivo e até desrespeitoso. Ziauddin é responsável por iniciar o processo de mudança cultural dentro de sua família, derrubando valores e práticas patriarcais. Permitir e até incentivar que sua esposa fosse ao mercado, ao hospital ou a qualquer local desacompanhada de um homem era mal interpretado, mas aos poucos os familiares mais próximos foram se acostumando com a forma de agir e de se comportar dele e da esposa Toor Pekai.

O casal tem três filhos: Khushal, Atal e Malala. O casamento com Toor Pekai fora arranjado pelas famílias, mas o amor e admiração eram intrínsecos e ocorriam desde antes do arranjo do matrimônio. Malala, que crescera em um ambiente familiar menos repressivo, costumava brincar que também teria um casamento arranjado, mas – no caso – arranjado por ela mesma.

Durante as refeições, Ziauddin, Toor Pekai, Malala, Khushal e Atal sentavam-se juntos à mesa. Esses momentos eram de confraternização, não deveriam haver distinções entre os filhos homens, a filha mulher ou a esposa. Desde criança, incentivava Malala para que ela jamais se sentisse subestimada ou tivesse seus talentos e habilidades tolidos. Malala ama estudar e desde criança parece compreender a importância da escola. É a aluna mais dedicada de sua classe, tem os materiais sempre organizados, livros e cadernos na mais perfeita ordem e notas exemplares.

Apesar dos esforços, nem todas as ideias consideradas vanguardistas de Ziauddin conseguem ser implementadas. A Escola Khushal, que levava o nome de um dos seus filhos, foi aberta com turmas mistas, em que meninos e meninas estudavam juntos. A iniciativa, porém, foi reprovada pela maioria das famílias, que não consideravam adequado que suas filhas adolescentes convivessem com meninos, o que era interpretado como desrespeitoso contra a honra das garotas pela tradição pachton. Ziauddin insistiu e tentou manter as turmas mistas por um tempo, mas acaba cedendo às pressões, caso contrário, a escola iria à falência. Além disso, o fato das meninas estudarem, mesmo em turmas exclusivas para garotas , já era vanguardista em uma sociedade em que a norma era sequer as mulheres terem o direito de estudar. Uma história aparentemente inacreditável quando percebemos que essa é a realidade do Paquistão no início dos anos 2000.

Em 2007 o regime de talibanização começa a dominar o país. A rádio comandada pelo Talibã anuncia o fim da educação feminina a partir de janeiro de 2009. Nesse contexto, Malala – que já era uma liderança estudantil -, juntamente com outras garotas, dá prosseguimento aos estudos de forma extra-oficial na Escola dirigida por seu pai. As meninas precisam estudar de forma escondida. É cada vez mais perigoso que elas saiam na rua, ainda mais desacompanhadas, mesmo para ir à escola no pequeno vilarejo de Mingora. Em 2012, Malala já havia escrito um blog para a BBC sob um pseudônimo, contando sobre as restrições de seu país, a violência, os ataques armados e as infinitas dificuldades para estudar. Tornara-se uma liderança jovem nas escolas da região, sendo considerada como uma ameaça ao Talibã, que acaba atacando o ônibus onde ela estava e desferindo-lhe um tiro na cabeça. A menina escapa da morte e todos os detalhes da luta da família por sua sobrevivência são narrados pelo pai de forma emocionante na obra.

Ziauddin conta ainda que por pouco o filho Atal não estivera no mesmo ônibus no dia do ataque. Graças ao fato de ser considerado um menino agitado e desobediente que não queria viajar no ônibus escolar sentado, naquele dia o motorista havia o deixado para trás como forma de repreensão. No dia do atentado Malala é socorrida às pressas, recebe os primeiros socorros no Paquistão, mas dada a gravidade do quadro é transferida de helicóptero para o Reino Unido. A menina passa por uma cirurgia de emergência para remoção da bala em seu crânio e por meses de recuperação. O quadro é dramático, pois a família não sabia se ela sobreviveria e se ficaria com sequelas. Felizmente a garota sobrevive e a consequência mais grave que tem é um dos lados da face caído, sem movimentos, o que mais adiante é reparado através de nova cirurgia.

Malala, que já era reconhecida e premiada no Paquistão, pelo ativismo e luta pelo direito à educação feminina, em 2014 recebe o Prêmio Nobel da Paz. O pai narra no livro o impacto desse reconhecimento até então inimaginável, o sentimento de orgulho e a gratificação.

Relata ainda sua difícil adaptação à vida no Reino Unido, em Birmingham, onde a família passa a morar desde o atentado que atingiu Malala. Os três filhos passam a frequentar a escola em um novo contexto, deparando-se com uma nova cultura completamente diferente da sua. As escolas eram mistas, onde meninos e meninas conviviam com naturalidade. As meninas e mulheres andavam desacompanhadas nas ruas e não cobriam o rosto. Na perspectiva que a família estava habituada no Paquistão, as mulheres do Reino Unido andavam praticamente peladas. O choque cultural foi imenso, mesmo sendo a família Yousafzai considerada bastante avançada para seu tempo.

Ziauddin não entendia porque os filhos muitas vezes não o respondiam quando estavam no computador, parecendo ignorar sua autoridade de pai. Admite que sentia falta de alguns valores de autoridade e respeito de sua posição paterna como ocorria no Paquistão. Aos poucos compreende que os filhos estavam tornando-se cidadãos, críticos e reflexivos, que não necessariamente estavam apenas brincando ou jogando. Muitas vezes estavam fazendo a lição de casa, pesquisando temas importantes. Com o passar do tempo, foi acostumando-se ao novo contexto. Era uma realidade em que meninos e meninas estudavam juntos, não havia uma grande hierarquia entre pais e filhos, a obediência não ocorria como em seu país.

Foi um choque para Ziauddin e Toor Pekai quando Atal quis convidar oito amigos da escola para dormir em sua casa. Na prática, não dormiram, ficaram jogando videogame a noite toda. Mas no Paquistão esse tipo de convite não ocorria, pois se as crianças tinham família deveriam dormir em suas casas. Aos poucos Ziauddin e Toor Pekai aprendem também com os filhos sobre a cultura do país. Ziauddin, reticente no início com o hábito até então estranho para ele, admite que acaba gostando dos garotos, da energia e da alegria de todos trazida para sua casa. Se eram amigos de seu filho, seriam seus amigos também e seriam sempre bem-vindos.

Quanto à Malala, aos vinte e um anos de idade, já não precisava da companhia do pai e de cuidados para viajar pelo mundo, fazer conferências e participar de atividades do Fundo Malala internacional pela educação das mulheres. Ziauddin, que um dia também desejou sua própria liberdade em relação à sua família, espera que a filha possa voar, ser livre para construir seu caminho e suas escolhas. Fica feliz por saber que pode estar perto ou que ela irá lhe telefonar quando precisar de algo.

Uma obra que nos faz admirar a relação entre pais e filhos, o amor e a união de uma família em meio a tantas adversidades. Um livro comovente por suas passagens dramáticas, a luta constante pela sobrevivência, a luta pela propagação da vida, a luta pela educação, a busca pela igualdade de direitos e de oportunidades. Um livro emocionante e que nos faz crescer como leitores, como cidadãos e como seres humanos.

Já havia lido há pouco tempo a obra “Eu sou Malala” e para mim a história trazida por Ziauddin no que diz respeito à Malala não foi surpreendente, mas foi complementar em relação ao livro escrito pela própria garota. O olhar do pai, o desespero para salvar a vida da filha, o orgulho e a satisfação por ela se tornar quem se tornou, a alegria que transborda ao peito quando ela recebe o Prêmio Nobel da Paz, as conquistas diversas, são pontos trazidos de forma muito latente e intensa em “Livre para voar”. Pude conhecer mais a fundo Ziauddin e Toor Pekai. Fica evidente que as bases familiares foram fundamentais para propiciar à Malala os voos que alçou. Isso não retira ou desmerece o mérito de sua luta, mas é preciso observar que sua voz teve eco porque encontrou, dentro da própria casa, a força que precisava para romper com uma cultura retrógrada, patriarcal e subjugadora a qual as mulheres no Paquistão estão submetidas.

Posso dizer que tornei-me fã da família Yousafzai. Passo a admirar Malala profundamente por tudo que ela é e representa para a humanidade. Ziauddin, porque trouxe as bases e o apoio para que Malala se tornasse esse ícone que é hoje. Ele que, em meio a suas próprias contradições, incentivou a filha para que alçasse voos longos e libertadores. Toor Pekai, por ser uma mulher sábia e batalhadora, que mesmo sem o conhecimento formal ou os diplomas escolares e acadêmicos, trouxe luz e sabedoria à família. “Livre para voar” é uma lição de vida, generosidade e esperança para um mundo que necessita de forma urgente de educação e amor.

Resenha da obra “Ser André Werkhausen Boone”

Eu considero que um livro é bom quando chego ao ponto de não querer terminá-lo para prorrogar o tempo em contato com a obra. Se acabo optando por e interromper a leitura para sobrarem páginas para o dia seguinte é porque o volume é realmente incrível. Foi assim com a obra “Ser André Werkhausen Boone” (Editora Amstad, Nova Petrópolis, 2018), de autoria do próprio André Werkhausen Boone. O André é um dos autores da nossa coletânea Histórias de Baixa Visão, a qual tive a alegria de organizar. Participou de nossa primeira edição (2017) e da 2ª edição – Revista e Ampliada (2018). Sempre conversamos por whatsapp e trocávamos ideias literárias. Eu sabia que ele estava escrevendo um livro próprio contando sua trajetória e relação com a deficiência visual. Tinha certeza que seria uma obra importante e que acrescentaria muito nesse campo. Entretanto, mesmo já tendo conversado bastante com o ele e até participado de alguns eventos e lançamentos do nosso livro juntos, não conhecia detalhes de suas vivências que só foram possíveis compreender a partir da leitura da obra completa.

André era um jovem considerado “normal”, dentro do senso comum do que seria uma pessoa sem deficiência. Durante o Ensino Médio em Nova Petrópolis, cidade pacata da serra gaúcha, começa a sentir sintomas de dores no joelho que não passavam e acabam se espalhando pelo corpo todo. Sem entender o que acontecia consigo, buscando explicações de médico em médico, de hospital em hospital, dependendo de consultas e exames que demoravam e respostas que não vinham, vivenciou todos os problemas de acesso a saúde pública em uma pequena cidade do interior. Foi ao lado da mãe, dona Silvani – uma mulher batalhadora, que ganhou todo o meu respeito e admiração a partir da obra – que percorreu hospitais de Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre em busca de respostas enquanto seu quadro de saúde só se agravava.

A partir da leitura do livro você vai entendendo, junto com as memórias do autor, como André sai de uma condição de tetraplegia, sem controle de braços e pernas, sem sensibilidade e força nos membros, sem controle das necessidades fisiológicas e uma infinidade de medos e incertezas – inclusive sobre a continuidade da própria vida – para a condição de “somente cego”. Tornar-se uma pessoa cega, mas caminhando, escutando, se deslocando, sem alterações cognitivas, acaba configurando-se como uma importante conquista nesse contexto.

Reconstruindo e ressignificando toda sua existência, André – já na condição de cego e no auge de sua adolescência – precisa se afastar da escola para passar pela reabilitação. Teria que aprender a fazer as mesmas coisas que fazia antes, agora sem a visão. Muitos tropeços e dificuldades no caminho. Problemas de falta de acessibilidade de toda ordem: no transporte público, calçadas, sinaleiras, orelhões e objetos aéreos pela cidade atrapalhavam sua locomoção e autonomia. Com pitadas de bom humor e sem nunca desistir, o autor cria um novo significado para a palavra “testar”. Segundo ele, significaria a partir de então “colidir com a testa”.

A leitura de “Ser André Werkhausen Boone” é um convite a se repensar nossos posicionamentos diante das adversidades da vida. A superação de questões graves de saúde, a crença em soluções mesmo quando os médicos diziam que nada poderia ser feito, a vitória diante de abalos emocionais profundos, contornando a depressão e a ansiedade. A autodeterminação e jamais a resignação. A luta pela vida em todas as suas dimensões e com toda a intensidade possível e impossível. Passei a admirar ainda mais o autor e indico a leitura da obra para todos.

Do ponto de vista literário, o livro divide-se em capítulos curtos, bem estruturados, que terminam deixando gosto de quero mais. A continuidade está no capítulo seguinte e assim sucessivamente, de forma que a leitura de mais de 200 páginas é muito rápida e fluida. Além do aprendizado enquanto ser humano, o autor traz um retrato muito fiel da realidade de sua cidade, das rotinas e problemas do interior, de sua escola e de seu bairro Pousada da Neve. Aprendi mais sobre o cotidiano dos “neopetropolitanos”, nome até então desconhecido por mim para designar os nativos dessa encantadora cidade. Conhecia Nova Petrópolis apenas pelo ponto de vista turístico, mas nunca tinha tido a perspectiva de quem mora e vivencia o local para além das atrações destinadas a visitantes, bem como das comidas e bebidas convidativas do inverno gaúcho.

O contraste entre três cidades, de pequeno, médio e grande porte – no caso Nova Petrópolis, Caxias do Sul e Porto Alegre – é um ponto amplamente explorado na obra pelo olhar apurado e atento do autor, que – em paralelo a sua história e drama pessoal retrata o contexto social em que vivia e apresenta o universo de sua família e das dificuldades enfrentadas por todos. Dona Silvani, trabalhadora de uma fábrica de calçados, precisava o acompanhar nas viagens e médicos, sem abandonar o emprego. Foi o caminho até o trabalho da mãe sozinho uma das grandes vitórias na busca por recuperar sua autonomia para o deslocamento após a perda da visão. André, que já conhecia as localidades quando enxergava, redescobre seus espaços, caminhos, sons, cheiros e movimentações após tornar-se uma pessoa cega.

A vida tranquila, as árvores frutíferas, as galinhas no pátio de casa, a decisão de não levá-las a panela por tornarem-se de estimação, o conhecimento de toda a vizinhança pelo nome, a visita aos mais chegados. São elementos cotidianos e marcantes da vida no interior, mas impraticáveis nas grandes cidades. Ele depara-se ora com o saudosismo e a nostalgia de sua cidadezinha, ora com a admiração, o encantamento e o entusiasmo quando se deslocava para os grandes centros em busca de tratamento e respostas aos problemas de saúde que o acometiam. O bater de sua bengala pelos obstáculos das cidades grandes, o emaranhado de comércios pelo centro de Porto Alegre, os bares e restaurantes, as infinitas vozes, barulhos de ônibus, buzinas, camelôs, grandes avenidas para atravessar. Situações já desafiadoras para qualquer pessoa que vive no interior e visita uma cidade grande, mas ainda um desafio maior quando se faz tudo isso sem enxergar.

O título me deixou emocionada em diversos momentos, por me identificar com muitos pontos trazidos pelo autor e também por conhecer tantas questões diferentes e que fugiam completamente da minha realidade. André Werkhausen Boone traz a importante lição de que “sem sonhos, não há lutas”. Não se considera um vencedor, mas “um constante lutador”. Um livro para ler, reler, emprestar e divulgar aos amigos. Disponível nas versões impressa e digital, acessível para pessoas com deficiência visual. Para aquisição, entre em contato através do whatsapp (54) 98127 8170 ou email w.booneandre@gmail.com.