Uma literatura dotada de intenso realismo e profundidade. A narrativa de Conceição Evaristo parece detalhar fotograficamente o universo da favela e das personagens da obra. A leitura quase me permitiu escutar o cantarolar de Vó Rita, seu riso fácil, sentir seus braços gordos e fartos em um gostoso abraço cheio de afeto; desfrutar da companhia de Bondade, que, de visita em visita, colhia sorrisos por onde passava; escutar a vontade de resistir e os ensinamentos de Negro Alírio. São inúmeras as histórias de vida de Maria Nova, Maria Velha, Dora, Ditinha, Jorge Balalaica, Cidinha Cidoca, entre tantos outros personagens – alguns sequer sem nome, tão insignificantes quanto suas próprias existências.
São histórias que se encontram e desencontram por entre os becos da favela, que se passam ora na torneira de cima, ora na torneira de baixo, ora no barraco de um, ora no barraco de outro. São crônicas que, somadas, compõem o romance, como se cada episódio fosse um dos becos da favela. A soma de todos os relatos cotidianos, no labirinto de pobreza, misérias e desesperanças, estruturam o romance, formando o emaranhado mapa da favela.
O posfácio “Costurando uma colcha de memórias”, de Maria Nazareth Soares Fonseca, observa que a obra permite a escuta do silêncio imposto aos marginalizados através de uma história narrada por suas próprias vozes. O livro expõe as vidas subterrâneas de homens e mulheres na luta contra a fome, bem como as vidas de crianças que precisam crescer precocemente para ajudar as famílias. Entre o barraco e o barranco, Conceição Evaristo nos permite conhecer os pedaços e fragmentos de vidas mal vividas.
Narrativas envolvendo diferentes núcleos familiares apresentam todas o mesmo pano de fundo: o “desfavelamento”, ou seja, processo que pouco a pouco expurga os moradores dali. Em nome da urbanização, do progresso e de uma infinidade de outras questões, a transferência deles ocorria como a de animais embolados na boleia de caminhões. Eram levados para rincões distantes. Cada família ia para um canto diferente, tentar a própria sorte, em um mundo sem esperança de uma realidade melhor.
As autoridades ofereciam dinheiro ou material de construção e um terreno para que as famílias deixassem o local. Não poderiam demorar para ir embora. Havia pressa pela desocupação da área. O caminhão viria recolher as trochas com as poucas roupas, as telhas, os papelões, os pinicos, as caixas, os fogareiros. A favela era a única referência para a maioria deles, que moraram ali a vida inteira, trabalhando nos arredores, tendo nos limites do morro a maior perspectiva vislumbrada para as próprias vidas.
Sem educação, sem escola, sem comida, sem roupas, sem cobertores, sem cama, sem água encanada, sem dignidade, sem trabalho, sem acreditar em nada, precisavam ter forças para recomeçar em outro local. Uma nova vida em um local muito mais distante, sem referências, sem nenhum suporte, sem nenhum rumo. Então recomeçar o quê?
Um livro que me fez resgatar a reflexão sobre as diversas formas de se contar e de se apresentar as histórias da humanidade, de um povoado, país ou continente. A narrativa que nos é contadas sobre guerras, invasões, colonizações, dominações, dizimações e açoitamentos obedece invariavelmente a lógica “oficial” dos livros didáticos de História que jamais problematizam a perspectiva dos “vencidos” ou dos dominados. No caso dos índios e povos que habitavam a América Latina antes da chegada dos europeus, por exemplo, sempre escutamos a perspectiva que apresenta a América como “colonizada” pelos portugueses ou espanhóis. E qual a história dos que ali viviam? Quais suas crenças, tradições, comportamentos? Como se sentiram com a dominação dos europeus? Como foram tratados? Quais as implicações disso? Por que a história é contada apenas a partir da chegada dos ditos colonizadores?
“Becos da Memória” revela a aproximação – e por que não a equivalência – entre a senzala e a favela. Agora homens ditos livres. Mas livres para quê? De que maneira? O que a vida lhes poderia permitir? A maioria dos homens e mulheres insistiam em viver, não se entregavam fácil. Alguns, porém, preferiam abreviar a dor e terminar mais rapidamente com aquela vida sofrida. A dita “liberdade” não lhes trazia qualquer escolha ou possibilidade de mudança. O desfavelamento não lhes trazia qualquer melhoria, qualquer redução no sofrimento. Pelo contrário, todos os laços são rompidos, o afeto construído é quebrado, a rede de apoio, as estratégias de sobrevivência, o companheirismo de todas as manhãs das lavadeiras, as brincadeiras das crianças, nada disso persiste.
Os tratores, que abrem clareiras e aplainam o terreno em nome do desenvolvimento, são o símbolo da morte, da exclusão, da miséria, do apagamento do único espaço que consideravam seu: a favela. Dia após dia, as máquinas seguem violentamente aplainando o terreno, destruindo os becos, retirando as características do terreno acidentado. Os “bichos pesadões”, com o barulho ensurdecedor de amargura, aplainam a terra que antes sustentava casebres e histórias de tanta gente. Semana após semana, mês após mês, a favela vai ficando menor, todos vão indo embora. Alguns meninos morreram brincando em volta dos tratores. Alguns adultos morreram de desgosto, de aflição, de angústia por ter de ir embora e não ter um destino. Enterrados como indigentes, não havia dinheiro ou dignidade sequer para a morte.
Mas o progresso… O progresso…. O desenvolvimento… O desenvolvimento… É preciso terminar com as favelas. É preciso retirá-las dos olhos de quem não pode vê-las, mandar aquela gente pobre, preta, suja e fedorenta embora. Tinham que sair dali, do meio da área nobre da cidade. Tudo estaria resolvido. E seguem os tratores patrolando o terreno e a subsistência daqueles que ali viviam. Segue o barulho da violência e da agressão que apenas os moradores dali escutam. O campinho da pelada do final de semana não existe mais, os barracos não existem mais, o boteco da pinga também não existe mais, as torneiras foram desativadas e arrancadas, o sopro de vida e de resistência diminui a cada instante. As despedidas são pesadas e tristes. Cada um que vai embora é uma fagulha de esperança que se apaga.
O posfácio “A força das palavras, da memória e da narrativa”, de Simone Pereira Schmidt, evidencia que a obra nos permite aprender um pouco do que é ser negro no Brasil e do que significa ser branco em uma sociedade racista. O trabalho de sol a sol das lavadeiras, em constante esforço pela sobrevivência, é comparado ao trabalho nas senzalas. A geografia dos becos remete novamente à escravidão. O passado colonial e o presente com a herança colonial se fundem numa continuidade sem fim. O regime escravocrata, agora chamado de liberdade, impõe as mesmas regras e condições àquelas pessoas. A saída da favela para outro local pretensamente mais “adequado”, também não representa qualquer mudança real.
Conceição Evaristo, uma autora que até então eu desconhecia, denuncia toda essa realidade, em uma literatura nada ficcional. Ao conhecer a obra, não tive dúvidas de que estava diante de uma das maiores escritoras de literatura brasileira e mundial de nosso tempo, que passo a admirar e respeitar profundamente, a qual recomendo a todos.