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Saudades e boas lembranças de um ciclo na TVE

Ontem (27) terminou um ciclo na TVE e na mi nha vida. Foi a fim dos contratos emergenciais. Entrei lá há dois anos, com um grupo composto por 60 pessoas. Sempre soubemos que esse contrato era temporário e tinha prazo para terminar. Mas o que nem eu nem meus colegas imaginávamos o quão difícil dizer “tchau”.

Mais difícil do que fazer um programa ao vivo, pensar uma pauta, estudar sobre o tema, treinar a impostação da voz e a respiração, memorizar o texto ou conduzir uma entrevita foi ir embora nessa terça-feira e não saber muito bem o que faria na quarta. Foi difícil fazer meu comentário no Cidadania. Foi difícil entrar lá, ver a redação – que no dia seguinte teria menos gente -, passar pelo bar – onde tomei tantos e tantos cafés com pessoas queridas -, entrar no camarim – onde demos inúmeras risadas e conversamos sobre todos os nossos assuntos particulares antes do programa entrar no ar.

Me lembro muito bem quando cheguei lá há exatos dois anos – em um ambiente sem nenhuma acessibilidade – e senti uma desconfiança inicial sobre o que uma jornalista com baixa visão poderia ou seria capaz de fazer. Havia um certo pudor ou até receio sobre como abordar a questão no dia a dia e no ambiente de trabalho. Não havia nenhum programa de apoio ou incentivo à inclusão de profissionais com deficiência na Fundação Piratini. As pessoas não sabiam como agir e talvez quisessem me “proteger” de alguma forma, me poupando de situações corriqueiras para outros jornalistas.

As coisas foram se acomodando de forma improvisada, mas tudo se encaixou com o passar do tempo. Tive que brigar por oportunidades e desafios, pois o que eu queria era justamente ser submetida a desafios e me desenvolver profissionalmente como qualquer um de meus colegas. Não queria ficar quietinha num canto como se não pudesse contribuir com nada.

Aos poucos foi ficando evidente para todos que eu – ou outras pessoas com outras deficiências – poderíamos, sim, escolher a profissão de jornalista (ou qualquer outra), fazer reportagens, sair para atividades externas, apresentar um programa etc.

Mais do que ter demonstrado minhas capacidades e competências, tenho muito orgulho em perceber que minha presença lá contribuiu para pautar reportagens sobre os direitos das pessoas com deficiência e os desafios na área da acessibilidade. Acredito na força do bom jornalismo e na missão de uma TV pública. Por isso, entendo cada pauta sobre essa questão como um isntrumento de mudança social e formação de uma sociedade mais sensível e consciente.

Hoje fico orgulhosa em lembrar que eu era a primeira pessoa a ser chamada para fazer reportagens sobre acessibilidade. Mas fico ainda mais feliz e satisfeita por saber que meus comentários no Cidadania já não eram apenas sobre essa temática. Pude falar sobre direitos do consumidor, saúde, educação, violência, economia ou qualquer outro assunto pertinente ao interesse público.

Posso dizer que sou apaixonada pelo jornalismo. E tenho certeza que escolhi a profissão certa para mim. O programa TVE Repórter (assista na postagem anterior!) que tive a oportunidade de fazer pouco antes desses dois anos encerrarem-se é uma prova disso.

Fico orgulhosa de sair de lá, com a expectativa e a esperança de voltar, sendo aprovada no concurso (dessa vez efetivo e não temporário, que terá seu resultado divulgado na próxima semana). Independentemente de eu ser aprovada ou não, essa fase eu concluo de cabeça erguida, feliz com tudo que realizei profissionalmente, com as transformações que vi acontecerem dentro da TVE e com a mudança de pensamento e preocupação dos próprios funcionários e chefias com a acessibilidade. Mas, acima de tudo, concluo essa fase feliz pelos laços que estabeleci e pelo relacionamento com as pessoas.

Agora minha deficiência visual – que no início poderia ser sinônimo de distância ou estranhamento – é algo que me engrandece e me valoriza como ser humano. Foi muito bom ver as ´pessoas brincando comigo no último dia quando falei que “pelo que vi, acho que fui bem no concurso”. Colegas e chefes com intimidade suficiente deram risadas e brincaram dizendo: “Pelo que você viu…? Então você não foi tão bem assim!!!!”.

Meu grande amigo Felipe Mianes diz que a grande inclusão acontece quando conseguimos justamente brincar com a deficiência e levar as dificuldades de forma leve. E foi extamente o que aconteceu com o passar do tempo. Um ambiente descontraído e com pessoas capazes de rirem, com respeito e admiração, é o maior símbolo disso.

Como diria a grande produtora e amiga Amanda de Carvalho lembrando a música do Lulu Santos, “a vida vem em ondas como o mar”. Essa foi uma onda que veio e que está passando… Mesmo que eu volte, o ambiente não será o mesmo e as pessoas não serão as mesmas. Saudades, gratidão e admiração são algumas das palavras que uso agora para tentar resumir esse momento. Amo vocês amigos e colegas da TVE!!!

Minha experiência enquanto jornalista com baixa visão

O fato de eu ter me tornado jornalista com baixa visão está causando curiosidade e interesse aos leitores do Três Gotinhas. Esse mês recebi dois emails do público leitor me questionando sobre isso. Um foi de uma estudante de São Paulo, que tem 18 anos e está decidindo o curso que vai fazer no vestibular, Ela se interessa muito pela área do Jornalismo e quer saber quais as facilidades e dificuldades da profissão para quem tem alguma deficiência visual.

O outro email foi de uma leitora, que já é jornalista formada e, assim como eu, tem baixa visão. Ela escreveu perguntando como é possível trabalhar em televisão e como eu faço já que não consigo ler o teleprompter. Fiquei muito feliz em receber esses emails, pois realmente gosto de compartilhar experiências com as pessoas. E gosto também quando as pessoas compartilham suas histórias comigo. (Aliás, vocês sabem que contribuições para o blog são sempre super bem-vindas!!!),

Contando então um pouco sobre minha experiência… Me formei em Jornalismo pela PUC-RS em 2007 e fiz mestrado em Letras pela UFRGS (que conclui em 2012). Na minha opinião nenhuma profissão é fácil para ninguém. Para quem tem qualquer deficiência física, terá invariavelmente maiores dificuldades, seja no curso de formação, no mercado de trabalho ou na forma como a sociedade lida com as pessoas com deficiência.

Na graduação tive disciplinas complexas para quem tem deficiência visual, como jornalismo online, tv, fotojornalismo, edição de imagem, diagramação, entre outras. Jamais me senti privilegiada nas avaliações, sempre tive que fazer os mesmos trabalhos e provas que os colegas.

Na verdade, pelo fato de eu ainda não usar bengala na faculdade, acho que os professores não chegavam a ter a real dimensão da minha deficiência visual. Então sempre me trataram como qualquer aluno, me ajudando ou fazendo alguma adaptação apenas em casos extremos, onde eu realmente não conseguia resolver a situação por conta própria. Acabava eu mesma me adaptando às situações que surgiam. Contei com o apoio de muitos professores mais compreensivos, mas nem sempre isso ocorria.

No último ano de faculdade, fiz um estágio na Assessoria de Comunicação de uma empresa, no Polo Petroquímico, em Triunfo/RS, há mais de uma hora de ônibus de Porto Alegre. Trabalhava lá o dia todo, saía de casa às 6h30 da manhã, voltava direto para a faculdade (que tive de transferir para o turno da noite) e chegava em casa pelas 23h, Foi um ano puxado, mas bastante intenso, com muitos aprendizados.

O maior desafio foi estudar à noite. Minha dificuldade visual aumenta muito a noite. Durante o dia ou em ambientes com mais iluminação não tenho tanta dificuldade, mas estudar a noite era algo que eu realmente não tinha imaginado. Tive de quebrar esse e outros tantos medos e receios. Solicitei à faculdade maior iluminação no entorno do prédio.

Percebi que estava superando aquela dificuldade quando, aos poucos, fui me preocupando mais com o estágio, com o trabalho de conclusão e com a formatura do que com as dificuldades práticas de estudar a noite. A vida precisava seguir de qualquer jeito, independentemente de eu ter de fazer o curso no turno da manhã ou da noite ou de ter de me locomover pelo campus sozinha em um horário de iluminação escassa.

Devo dizer, porém, que nem tudo foram dificuldades. Sempre tive facilidade para ouvir e gravar informações, seja fazendo uma entrevista jornalística ou escutando os professores em aula. Não copiava do quadro, mas conseguia anotar ou simplesmente memorizar tudo o que eles falavam. Na verdade, sempre fiz isso desde a época do Ensino Fundamental e Médio. Era algo meio intuitivo e muito natural, que eu acabava fazendo em função da deficiência visual, sem nem mesmo me dar conta.

Hoje vejo o quanto foi importante fazer o curso de Jornalismo sem grandes “adaptações”, pois isso me deu uma boa base curricular. Sempre pensei que, até pelo fato de eu ter uma dificuldade a mais (que meus colegas não tinham), deveria ir muito bem no curso, tirar boas notas e ser bem eficiente naquilo que eu me propusesse a fazer. Sabia que o mercado não seria nada fácil, que a concorrência é grande em qualquer profissão e que, para mim, talvez as dificuldades fossem maiores.

Jamais imaginei trabalhar em uma emissora de televisão, até pelas dificuldades práticas que eu sabia que existiriam. Sempre me interessei mais pela produção de conteúdo editorial para revistas, jornal impresso ou online. Ou ainda, pela área de assessoria de imprensa, divulgação de eventos, comunicação empresarial.

Estou surpresa comigo mesma, nesse momento, por estar trabalhando agora em uma emissora de TV, a TVE do Rio Grande do Sul. Vejo que isso é possível – algo que eu não imaginava -, com pequenas adaptações. O fato de eu não ler o teleprompter não é um problema, pois sempre falei de improviso desde a escola nas apresentações de trabalhos. Então isso é algo que já estava, de alguma forma, “treinada” a fazer desde sempre.

Para eu focar a câmera certa, meus colegas do estúdio, levantam um papel branco para que eu saiba para onde devo olhar. As câmeras são pretas e ficam em um local mais escuro do estudio, o que não gera contraste. Então uma simples folha branca já resolve a situação. O meu computador, que fica na Redação, também é adaptado, com fontes ampliadas e as configurações corretas para mim.

Nas reportagens de rua, sempre conto com o auxílio dos colegas cinegrafistas, que ajudam muito, dão dicas e orientações sobre melhores locais para gravar e forma de me posicionar adequadamente. No momento de gravar os boletins para as reportagens, o fato de eu ter baixa visão acho que ate facilita as coisas. pois sei que muitas pessoas ficam curiosas em volta, querendo ver o que o repórter está fazendo ou mesmo tentando aparecer na TV. Como eu não vejo o que está acontecendo em volta, consigo me concentrar e focar somente na câmera e no trabalho que devo fazer. Consigo “desligar” a mente das interferências externas. É como se eu usasse a baixa visão a meu favor: vejo apenas a câmera na minha frente e aquilo que é necessário ser visto naquele momento.

Mas as maiores barreiras que eu encontrei até hoje não foram em relação à falta de acessibilidade arquitetônica ou em relação a adaptações necessárias no meu dia a dia. As maiores dificuldade foram – e ainda são – em relação ao comportamento e à falta de compreensao das pessoas. Infelizmente as empresas e até colegas de trabalho muitas vezes subestimam a pessoa com deficiência e pensam que não somos capazes de desempenhar funções básicas da profissão.

Além disso, no currículo das faculdades de Comunicação sinto que faltam disciplinas sobre acessibilidade na mídia. Disciplinas sobre audiodescrição, legendagem, libras, construção de sites acessíveis simplesmente não existem. Não fazem parte da grade curricular, nem mesmo como eletivas. Os estudantes precisam buscar esse conhecimento por conta própria, o que acaba formando profissionais despreparados para pensar os meios de comunicação acessíveis a todos.

Enfim, muito ainda temos o que evoluir, não apenas na área da Comunicação Social, mas na sociedade em geral. Apesar da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a qual o Brasil é signatário, garantir o acesso pleno da pessoa com deficiência às comunicações, ao lazer e ao entretenimento, muito ainda temos a avançar nesse sentido.