Nesse final de semana tive a alegria de assistir algo inédito no Brasil: a primeira peça de teatro feita com audiodescrição aberta. Ou seja, não havia fones de ouvido na sala e todo o público pode escutar a audiodescrição da peça “A menina do cabelo vermelho”, da Las Brujas Companhia de Arte e Feitiço. O espetáculo contou a história de Filó (interpretada por Lolita Goldschmidt), uma menina sonhadora que tem o cabelo vermelho e vive no mundo preto e branco. Com muita imaginação, alegria e descontração Filó viaja pelo mundo e por lugares coloridos, conhece diferentes pessoas, culturas e sensações.
Como consultora da Tagarellas Audiodescrição, tive o privilégio de assistir todos os ensaios diariamente uma semana antes da sessão com AD e Libras (que ocorreu nesse último sábado, 18/01). Tive um sentimento único ao presenciar a AD sendo ensaiada junto com a peça. Isso para mim foi algo único e muito significativo, pois os atores e o diretor realmente incorporaram a AD como parte importante do espetáculo.
Até pelo fato da AD ser aberta, não havia como os atores não prestarem atenção nas descrições. Todos foram extremamente generosos com a equipe da AD, repetindo cenas e nos indicando deixas ou momentos importantes da peça e até se preocupando com os intervalos para que pudéssemos descrever. Obviamente a não queríamos que a AD interferisse na peça, o que de fato não aconteceu. Conseguimos, com todos os ensaios, adequar os tempos da AD ao tempo do espetáculo.
No grande dia da apresentação foi tocante ouvir a voz de Livia Dávalos no microfone, no mesmo volume da voz dos atores. Toda plateia que lotou o Centro Cultural CEEE Erico Veríssimo, em Porto Alegre, escutou a descrição do cenário, figurinos, ações e expressões dos personagens.
A AD realmente fez parte daquele espetáculo. Não soou estranho ou artificial, mas trouxe uma sensação de respeito e acolhimento com as pessoas cegas ou com baixa visão. Pela primeira vez quem não tinha deficiência visual precisou “adaptar-se” ao espetáculo com acessibilidade.
Acho que não foi um esforço tão grande, pois o relato de quem não tinha deficiência foi de alegria e entusiasmo, justamente por conhecer, através da peça, uma nova forma de fazer teatro. Uma formula que, com um pouco de magia e feitiço, contempla a todos – não somente aqueles que enxergam ou escutam o mundo da forma convencional.
Sempre fui uma entusiasta da AD aberta por inúmeros motivos. O primeiro é que trata-se de uma oportunidade de mostrarmos ao público em geral o que é AD. como ela acontece e o quanto ela é importante. O segundo motivo é porque melhora consideravelmente minha experiência enquanto usuária do recurso. Isso porque quando uso um fone de ouvido preciso escutar com um ouvido a AD e com outro o som ambiente do espetáculo. Há, nesses casos, um esforço maior para “montar” as duas bandas sonoras mentalmente e entendê-las como parte de um único todo.
Quando estou no cinema ou no teatro, quero me focar no enredo, nos personagens e no desenrolar da trama. Quero que a AD seja uma ferramenta para isso e que nunca seja mais importante que a produção artística em si. Quando uso um fone com a AD rente ao meu ouvido sinto como se aquele som estivesse mais perto de mim do que o som do espetáculo (e realmente está). Por consequência, é como se o áudio da AD fosse mais relevante do que o som ambiente – quando, na verdade, deveria ocorrer o contrário. A atração cultural em si sempre será o foco do espectador que vai prestigiá-la.
Em “A menina do cabelo vermelho” não foram as pessoa com deficiência visual que tiveram que ficar de fones para não incomodar os demais. Foram as pessoas que enxergam que puderam experimentar e perceber como esse recurso é fundamental para quem não pode ver.
A iniciativa de Las Brijas mostra uma nova forma de conceber o mundo. Uma nova forma de pensar em arte. Arte para todos. Teatro para todos e sem restrições. Teatro com acessibilidade já para as crianças e adolescentes, pois apostar na infância é apostar no futuro. Trazer AD e Libras já para os pequenos contribui com a formação do público infanto-juvenil, incentiva o gosto pela arte e pelo entretenimento desde cedo. As crianças que tem a oportunidade de ir a esse tipo de espetáculo hoje serão adultos com um entendimento de mundo diferente amanhã.
É por tudo isso que tenho orgulho da Las Brujas. Tenho orgulho por saber que fui parte do processo de contaminar positivamente Livia Dávalos e Lolita Goldschmidt, ex-alunas do curso de AD dado por mim, Felipe Mianes e Tagarellas no início do ano na UFRGS. Tenho orgulho em ser consultora de AD de uma peça como essa – que veio para marcar a história e a forma de fazer AD no país.
Uma nova forma de pensar a arte está surgindo. Isso me faz acreditar que, sim, podemos ser uma gotinha no oceano, mas talvez seja suficiente mudar o mundo e torná-lo mais justo e mais acessível para todos.
Que tri, Mari. Parabéns e valeu muito a experiência. Assim construimos um mundo melhor!!!
Literalmente, espetacular. Em breve, quero ver e ouvir de perto uma peça com AD! Parabéns Mari!!