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Até quando vamos esperar por acessibilidade?

Essa sexta-feira (28) estive no Seminário sobre Mulheres com Deficiência no RS, organizado pela Faders (fundação estadual que articula políticas públicas para pessoas com deficiência). Fui painelista na mesa sobre “Caminhos e trajetórias”, em que mulheres com diferentes deficiências compartilharam suas experiências, dificuldades, desafios e perspectivas em relação à acessibilidade. Todos os depoimentos foram ricos e contribuíram de forma exemplar ao evento.

Mas eu quero registrar aqui um dos depoimentos que mais me tocou. Foi o relato de Patrícia Rodrigues, que é surda e está envolvida na luta pelos direitos das pessoas surdas no acesso à saúde, à educação e à informação em todas as esferas. Ela falou principalmente sobre as dificuldades de acesso a informações no que diz respeito a saúde da mulher, doenças sexualmente transmissíveis e sexualidade. Os hospitais e postos de saúde não estão preparados para atender mulheres surdas. Poucos profissionais sabem Libras e não há interpretes em todos os espaços.

Meninas na fase da puberdade, quando tem a primeira menstruação e precisam consultar o ginecologista, muitas vezes não tem como se comunicar com o médico. Em função disso, acabam indo acompanhadas da mãe ou alguma amiga, o que pode lhes deixar constrangidas de fazer perguntas e tirar dúvidas. Mulheres mais velhas também não se sentem à vontade para falar sobre a própria sexualidade ou dificuldades nessa área.

Em muitos casos, mulheres surdas acabam evitando esse tipo de atendimento precário e, consequentemente, não tiram suas dúvidas com os profissionais. Campanhas sobre uso de preservativos, por exemplo, jamais são pensadas para pessoas surdas. Trata-se de uma questão de saúde pública, que pode aumentar o índice de doenças em função da falta de acesso à informação pelas pessoas surdas.

Março é o mês da mulher e Patricia lembrou que muitas campanhas são feitas contra a violência contra a mulher. O poder público divulga o número da Escuta Lilás para que mulheres realizem denúncias por telefone. Entretanto, não há nenhum canal de comunicação para as mulheres surdas. Vocè já parou para pensar com a mulher surda poderá fazer qualquer tipo de denúncia, reclamação ou pedir esclarecimentos? E no caso de uma situação extrema, em que precise pedir socorro, como isso ocorre se existe apenas um número de telefone para contato?

Patrícia contou que em 2012 já havia sugerido ao poder público um sistema de envio de mensagens de texto para que mulheres surdas, vítimas de violência, pudessem fazer denúncias e pedir socorro via mensagem de texto. Porém, dois anos depois, em 2014, esse sistema ainda não existe.

É preciso pensar também em meios de comunicação acessíveis em todos os serviços públicos como delegacias de polícia, emissão de documentos, escolas, SAMU, bombeiros, hospitais e centrais de marcação de consultas. Apenas disponibilizar número de telefone não é suficiente.

Outra questão que foi levantada no seminário foi com relação à péssima qualidade no transporte público em Porto Alegre, que é ruim para todos, mas se acentua no caso do atendimento às pessoas com deficiência. Vitória Bernardes, psicóloga e mediadora da mesa que participei, lembrou que muitas vezes as pessoas elogiam as mulheres com deficiência por “superarem” barreiras. Segundo Vitória, atividades rotineiras, como pegar um ônibus ou transitar com segurança pelas calçadas de Porto Alegre, não deveriam ser motivo de “superação”, pois a cidade deveria estar preparada para isso.

A “superação” deve ocorrer em momentos realmente difíceis da vida e que envolvem grandes desafios como, por exemplo, a constituição de uma família, a educação dos filhos, a inserção no mercado de trabalho, os estudos e a capacitação profissional etc. Esses, sim, são desafios complexos e exigem “superação” por parte de qualquer cidadão. Mas infelizmente, dentro da nossa realidade, pegar um ônibus ainda é um desafio e uma “superação” por pessoas cadeirantes, com mobilidade reduzida ou deficiência visual, visto que precisamos lidar com condições precárias das calçadas, ruas e ônibus.

No ano passado fiz uma reportagem para o Cidadania na TVE mostrando um projeto piloto de instalação do DPS2000 nos ônibus da Capital. Esse é um equipamento que traz autonomia no transporte público para pessoas com deficiência visual. O usuário utiliza um aparelho que lhe avisa quando a linha desejada está se aproximando da parada e informa também ao motorista que na parada há alguém com deficiência. O sistema já é um sucess em várias cidades brasileiras.

Foi testado pela Secretaria Municipal de Acessibilidade no final de setembro de 2013. Os testes foram realizados com diversos usuários da linha Auxiliadora e o resultado foi um sucesso. A previsão era de instalação em pelo menos algumas linhas de Porto Alegre já no início de 2014. Infelizmente, o projeto parece ter sido esquecido pela Prefeitura e a acessibilidade nos ônibus para pessoas com deficiência visual segue inexistindo.

Patrícia Rodrigues aguarda desde 2012 por um sistema para comunicação das pessoas surdas com o poder público. O projeto que daria autonomia a pessoas com deficiência visual nos ônibus de Porto Alegre parece ter sido esquecido desde o ano passado. Em pleno ano de 2014, quando o Brasil é signatário da convenção da ONU Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência desde 2008, esse tipo de situação não pode ser mais tolerada. Até quando teremos que esperar por soluções práticas?

Está muito claro que leis e direitos para as pessoas comd eficiência estão assegurados na Constituição, o dificil ainda é fazer com que eles sejam cumpridos. Apenas discursos vazios não são suficientes, precisamos de atitudes práticas e mudanças de comportamento. Até quando vamos esperar?

Obrigada Joel!

Na maioria das vezes utilizo o espaço do Três Gotinhas para dar visibilidade a problemas que enfrento no dia a dia, para questionar comportamentos e atitudes das pessoas, para publicar relatos dos leitores ou simplesmente apontar dificuldades ou ausência de acessibilidade pela cidade. Dessa vez, porém, quero usar esse espaço para fazer um elogio e registrar uma atitude que me surpreendeu positivamente.

Na última sexta-feira (25) peguei a linha T1 na avenida Ipiranga um pouco antes das 20h. Como já estava praticamente noite (apesar do horário de verão), pedi ao motorista que me avisasse quando chegasse na parada do Zaffari, onde iria descer. Estava apreensiva por estar quase escuro, pois talvez não conseguisse reconhecer a parada e por eu não estar acostumada a fazer aquele trajeto a noite, quando minha visão piora consideravelmente.

Mas o motorista tinha sido bastante receptivo comigo, bem simpático e disse que iria me avisar. Fiquei tranquila então. Contudo o ônibus foi andando, o tempo passando e algo estava estranho, pois pelos meus cálculos a parada já deveria ter chegado. Então resolvi perguntar: “Falta muito para a parada do Zaffari?”. E o motorista responde constrangido: “Nossa, esqueci de ti… Estamos quase no Bourbon. Confundi os dois, achei que você queria descer lá…”

Fiquei imensamente braba. Olhei pela janela. Já era noite fechada. Eu estava no meio da avenida Ipiranga, muitas paradas adiante de onde deveria ter descido. Iria ter que descer em um local que não estou acostumada, atravessar a avenida (muito movimentada) e pegar o ônibus novamente no sentido inverso (após encontrar a parada do outro lado da rua, que também não seria tarefa fácil). Ou então teria que pegar um taxi. Mas não sabia onde encontrar um ponto de taxi naquele lugar. Fiquei com muita raiva daquele motorista.

Para quem não tem deficiência visual talvez seja difícil entender o quanto é grave e até perigoso – descermos em um local que não estamos habituados. Talvez seja difícil compreender a dificuldade de um trajeto novo e em um ambiente estranho. Não que eu não estivesse orientada geograficamente, pois estava na mesma rua, só algumas paradas depois. Mas não conhecia aquelas calçadas, aquelas sinaleiras, os buracos e irregularidades que encontraria por lá. Quem não vivencia essas dificuldades pode pensar que descer em uma parada de ônibus diferente seja algo trivial e banal, mas para quem tem baixa visão é realmente muito complicado.

Já estava me preparando emocionalmente para enfrentar aquela situação. Iria descer do ônibus assim que ele parasse novamente e torcer para que encontrasse alguém disposto a me ajudar a chegar ate a parada do outro lado da rua. Foi quando o motorista me surpreendeu. Ele não esperou sequer chegarmos até a próxima parada. Estacionou o ônibus, me deu o braço e disse que iria fazer uma baldeação comigo, que iria me levar até a parada do T1 no sentido inverso para eu voltar.

Eu simplesmente não acreditei no que estava acontecendo. O ônibus estava lotado. “Você pode fazer isso e deixar todos os passageiros esperando? O que eles vão dizer? Irão reclamar com o senhor.”, questionei. Ele disse que tinha esquecido de me avisar da parada e que o mínimo que poderia fazer por mim era isso. Disse que iria comigo até la sem nenhum problema e que o ônibus ficaria parado esperando. E de fato foi o que aconteceu.

Para quem não conhece Porto Alegre, a avenida Ipiranga tem um arroio no meio, é uma avenida larga e bem movimentada. Tivemos que caminhar até uma ponte para atravessar e depois caminhamos mais até uma parada, onde ele me deixou com uma outra pessoa que iria pegar a mesma linha. Ele disse que tinha estacionado o ônibus em um local seguro e avisado a cobradora, ou seja, os passageiros iriam esperar.

Na verdade fiquei meio constrangida em estar fazendo outras pessoas esperarem. Pessoas que também tem seus compromissos e também tem pressa para chegar em casa. Mas confesso que diante daquele incidente fiquei muito aliviada. Agradeci imensamente o motorista, inclusive comentei com ele o quanto era difícil fazermos caminhos desconhecidos e por isso sua ajuda era fundamental.

O nome dele era Joel, mas o nome profissional é “Martin” ou “Martins” (fiquei na dúvida). Ele errou ao não me avisar da parada, mas contornou a situação da melhor forma possível. Fico até agora emocionada ao lembrar essa atitude. Por isso gostaria de compartilhar minha satisfação por conhecer um ser humano como ele. Certamente ele não sabia que tenho maior dificuldade de noite do que de dia para transitar pela cidade e ainda assim me ofereceu uma grande ajuda na tentativa de reparar seu engano. E interessante é que ele fez isso por mim, uma pessoa que ele sequer conhecia, mas teve consideração e respeito – assim como deveríamos ter por todos.

Não tenho o contato dele, mas ficaria muito feliz se ele pudesse ler esse texto e saber o quanto fiquei emocionada com sua atitude. Tomara que o exemplo de seu Joel se multiplique mundo afora.

O perfil das pessoas evidenciado nos ônibus

Os ônibus públicos de Porto Alegre são um reflexo da sociedade. Em um coletivo, lotado em horário de pico, no inicio ou fim do dia, vivenciam-se as mais diversas, inusitadas e até decepcionantes situações.

 

Há todo tipo de passageiro, de cobrador e de motorista no transporte público. Em suas diferentes funções, constituem-se de sujeitos com todo tipo de humor, caráter, educação, postura e valores.

Em uma breve permanência no confinamento de um ônibus lotado – único meio de transporte de grande parte da população -, as características intrínsecas de cada um inevitavelmente vem à tona.

 

A forma como as pessoas se portam em um ônibus pode revelar muito sobre ela. Saber conviver em um ônibus é uma questão de cidadaniaa e de relacionamento em sociedade. A conduta idônea ou desonesta de cada um pode ser observada através de simples gestos.

Os motoras
Começando pelos motoras, existem aqueles do tipo Apressadinho. São aqueles que não param quando você está correndo em direção à parada – geralmente num dia importante, em que você não poderia se atrasar, mas o despertador não tocou,

 

Nesses dias, o passageiro carrega sacolas, casacos, guarda-chuva e todo tipo de objeto que lhe dificulte de correr. São nesses dias em que as mulheres estão com seus saltos mais altos.

 

A solução é gritar ou bater no ônibus quando ele já está arrancando: “Por favor, pelo amor de Deus, espere!”. Tudo em vão porque o Apressadinho não irá esperar nem um segundo a mais.

 

“Filho da puta”, você pensa, mas não há mais nada que possa ser feito. A solução é esperar mais vinte minutos até que o próximo ônibus chegue lotado e você consiga se espremer na porta.

 

Além disso, o Apressadinho não pode ver uma velhinha subir os degraus da frente para rapidamente (mais do que das outras vezes) arrancar o veículo em um solavanco, fazendo com que a pobre senhora quase (ou de fato) despenque no chão.

Mas não sejamos injustos com os motoristas. Entre eles, há também o tipo Prestativo.

 

Ao contrário do Apressadinho, Prestativo é aquele que espera quando você está do outro lado da rua, tentando atravessar. Acaba deixando todos os passageiros dentro do ônibus incomodados com a demora para arrancar, mas Prestativo não se preocupa com isso. Está sempre tentando agradar.

 

Prestativo espera as velhinhas entrarem e sentarem no banco para só depois arrancar. Prestativo te reconhece quando você pega a mesma linha pela segunda vez na vida. Abre um sorrido diz: “Você de novo? Hora de voltar pra casa né? Que coisa boa”.

 

Pela manhã, Prestativo te diz “bom-dia” com um entusiasmo que você não sabe de onde ele tira, pois você sequer acordou direito. Para não ser mal educado, você murmura, ainda sonolento: “bom dia”, pensando consigo mesmo: “O que há de bom? Queria dormir mais um pouquinho…”.

 

Em suma, Prestativo é um motorista simpático, sorridente, de bem com a vida, que causa inveja e ódio ao Apressadinho.

Os cobradores

Passando ao perfil dos cobradores, o mais comum (depois que inventaram o cartão do Tri) é o Quietão. O cara fica ali enquanto as pessoas passam o cartãozinho automático. Só “gerenciando” a roleta. Profissão bacana essa! (Será que tem vaga?).

 

Quietão não incomoda ninguém. Faz o seu serviço discretamente, sem ser muito percebido. Só fala com quem lhe dirigem a palavra. Dá as informações sobre itinerário quando lhe pedem. Se não, fica lá Quietão.

 

O cobrador desse tipo é bem localizado na cidade e conhece os bairros por onde circula a linha. O Quietão é tão na dele que sequer reclama ou te olha de cara feia se você pagar a passagem com uma nota cinquenta.

 

Cumpre com dignidade sua função. Trabalhinho honesto o seu, sem sobressaltos.

O mais irritante, entre cobradores de ônibus, eu digo com absoluta certeza, é o Passinho a Frente. Ele repete incessantemente, mais de uma vez a cada parada, de forma mecânica e repugnante, a mesma sentença: “Passinho a frente, por favor”, “Passinho a frente, por favor”.

 

Às vezes, para quebrar a monotonia, intercala a frase com “Subindo e passando, por favor”, “Subindo e passando, por favor”.

 

Passinho a frente é um tipo sério, que não sorri, não conversa com os passageiros sobre qualquer outra coisa a não ser para lhes pedir que passem a roleta ou deem mais um “passinho a frente”.

 

Trata-se de uma pessoa obsessiva. Talvez, antes de se tornar cobrador, Passinho a Frente tenha sido radialista ou vendedor ambulante no Centro (daqueles que ficam gritando na Rua da Praia). Sua voz tem uma boa entonação, talvez pudesse concorrer no show de Calouros se souber cantar.

No fundo, todo Passinho a Frente gostaria de um dia se tornar um Quietão. Mas sua ansiedade por organizar a fila, por falar o tempo todo tempo a mesma frase e por ver as pessoas passarem a roleta é tanta que ele jamais atingirá esse sonho.
Os passageiros

Chegamos, finalmente, ao perfil dos passageiros. Eis o grupo onde há a maior variedade de tipos. O estilo Apressadinho, já apresentado entre os motoristas, repete-se entre os passageiros, com algumas peculiaridades.

 

O passageiro Apressadinho já na parada joga-se na frente de todos para entrar primeiro no ônibus. Após, Apressadinho segue rápido para passar a roleta e chegar ao fundo do coletivo o quanto antes. Fica o mais próximo da porta possível para ser o primeiro a descer na sua parada.

 

Custe o que custar, sempre cumpre suas metas de ser o primeiro em todos os seus percursos na cidade.

 

Os demais passageiros não têm sequer agilidade para qualquer reação. Quando percebem, lá na frente está Apressadinho, fazendo jus ao título.
O próximo passageiro é o tipo Educado. Espécie em extinção (mas não perca as esperanças!), encontrado de vez em quando. Por representar um tipo rara, precisa ser valorizado.

 

A vantagem é que, por ser tão raro, é rapidamente identificável em qualquer trajeto de ônibus. Não há como confundi-lo.

 

Já na porta, Educado espera todos entrarem, sobe calmamente depois, cumprimenta o motorista e o cobrador. Ainda por cima, dá assunto para as velhinhas que logo o interpelam quando notam sua presença.

 

Sempre disposto a ceder o lugar a idosos, mulheres e crianças. Ao esbarrar em alguém (pasmem!), ele pede desculpas. Diz também “com licença” ao sentar do lado de alguém e na hora de levantar e passar por entre as pessoas.

Educado é exatamente o contraste do De Mal Com a Vida. Esse, por sua vez, entra no ônibus brabo, sempre carrancudo.

 

Não suporta piadinhas, pessoas conversando alto ou ouvindo música. Não gosta de crianças, não gosta de gente alegre, não gosta de gente triste. Não gosta de ninguém. Nada o satisfaz.

 

De Mal Com a Vida não deveria sair da cama jamais. Sua simples presença perturba todo o ambiente.

Em sua fase mais avançada, De Mal com a Vida torna-se um Espertinho. Esse último é o símbolo da malandragem e do “jeitinho brasileiro”.

 

Espertinho adota estratégias diversas na tentativa de driblar o cobrador para não pagar a passagem ou pagar menos que o valor devido.

 

Entra no ônibus e simula que esqueceu o dinheiro ou o cartão do Tri. Às vezes inventa uma história de que foi assaltado só para ficar na frente e andar de graça.

 

Mas o que ele quer mesmo é tirar vantagem do cobrador na hora de receber o troco. Pode lhe dar dinheiro a menos, lhe pagar com uma nota falsa, dizer que pagou quando não pagou – são inúmeras as táticas adotadas.

 

Espertinho está constantemente em busca de uma brecha onde possa agir. Suas técnicas de esperteza são constantemente aprimoradas.
O tipo mais pacato dentro de um coletivo público hoje em dia, não há como negar, é o Na Dele. Esse, sim, não incomoda ninguém, não ofere riscos ou ameaças (ao contrário do Espertinho que está sempre na espreita para tirar proveito de alguém).

 

Na Dele entra no ônibus em silêncio, sai em silêncio. Senta se tiver lugar. Se não tiver, fica de pé sem pestanejar.

 

Na Dele é o modelo ideal, o sonho dos motoristas e cobradores. Para satisfação dos que estão ao seu redor, é não dá conversa para as Típicas Senhoras.

 

Ah, as Típicas Senhoras são velhinhas que pegam ônibus o tempo todo para ir “passear” no Centro. Vão ao Mercado Público comprar condimentos, temperos e chás medicinais (para todas as suas doenças). Gostam de olhar lojas de antiguidades (com produtos, muitas vezes, mais velhos que elas próprias).

 

As Típicas Senhoras não querem passar a roleta. Ficam disputando os únicos três lugares existentes na frente.

 

Têm de cair enquanto o ônibus arranca. Preferem ficar de pé se acotovelando na frente, mesmo que atrás tenha lugar livre.

 

Estão sempre alugando os ouvidos do cobrador e do motorista, que geralmente não estão nem um pouco interessados em escutar as histórias a respeito de todas as gerações de suas famílias.

Diante de tantos tipos humanos presentes nos ônibus da capital gaúcha, creio que talvez um possível teste para conhecer a personalidade de uma pessoa e medir seu nível de estresse seja avaliar seu comportamento no transporte público.

 

Diante de tudo isso, fica uma dúvida: o que será que se passa na mente do passageiro Na Dele e do cobrador Quietão? Não sei, mas vou me cuidar ao entrar no ônibus, pois sempre podemos estar sendo observados…

Pérolas lamentáveis

Algumas pessoas emitem frases e opiniões, aparentemente banais, sem medir o alcance de suas palavras. As palavras podem ferir mais do que um tiro de revólver.
O momento de pegar ônibus em Porto Alegre é sempre uma situação crítica, pois preciso interagir com as pessoas e pedir para que elas me avisem quando vier meu ônibus.
Uma situação corriqueira, mas que, contudo, acaba me trazendo muito estresse. É o momento em que escuto comentários lamentáveis. Quando peço para alguém me avisar qual é meu ônibus, meu coração acelera. Sei que corro perigo de escutar coisas extremamente desagradáveis, vindos de pessoas sem sensibilidade alguma.
Talvez na tentativa de ser simpático ou de simplesmente não ficar em silêncio, não raras vezes meu interlocutor diz coisas sem pensar, que me deixam constrangida, para não dizer braba, furiosa, revoltada.
Esses dias pedi ajuda a uma senhora em uma parada na avenida Oswaldo Aranha. Ela respondeu que me avisaria quando viesse o meu ônibus, pois o dela ainda ia demorar uns 50 minutos. Perguntei para onde ela ia. “Para Alvorada, só que o ônibus só passa de hora em hora”, respondeu. Ela contou que, depois que seu ônibus chegasse, levava mais uma hora até em casa. “Nossa, que demora”, pensei. Até ai tudo sobre controle, mas a senhora continuou:
– “Tu não enxerga nada?”
– “Enxergo pouco senhora, tenho baixa visão”, respondi.
Até ai, tudo bem ainda. Estou acostumada a responder esse tipo de coisa e, de verdade, não me importo em falar sobre isso quando as pessoas agem com naturalidade e não falam coisas absurdas. Porém, como eu já esperava (pois sempre ocorre depois da pessoa começar a falar sobre esse assunto), a senhora largou a pérola do dia:
– “Ah, que bom que enxerga um pouco então! Graças a Deus! Mais triste ainda seria se não enxergasse nada!”
Contei até um milhão para não explodir e xingar aquele ser por todos seus antepassados. “Mais triste ainda seria se não enxergasse nada”. Aquela frase ecoou com violência, como um soco, como um tiro – que recebo constantemente de todos os lados.
Em primeiro lugar, não acho que a minha vida seja nem um pouco triste. Aliás, mesmo que fosse cega acho que minha vida não seria triste. Em segundo lugar, se tem algo triste nessa situação, para mim, é o fato da mulher morar em Alvorada, ter que esperar 50 minutos pelo ônibus e depois mais uma hora até chegar em casa. Na minha opinião isso sim é triste. Em duas horas de viagem eu chego na praia ou na serra! Eu em 15 minutos estaria dentro da minha casa.
Situações como essa são comuns, acontecem diariamente e me irritam diariamente. As pessoas não se dão conta do poder das palavras e de como seus comentários estão impregnados de preconceitos e estereótipos negativos. Por que um cego ou alguém com baixa visão precisa ter uma vida triste?
E o pior de tudo é que eu não podia brigar com a mulher que iria me avisar do meu ônibus. Eu ainda dependia de sua ajuda. Tive que ficar ali, firme, sem brigar, sem mandar ela longe, sem reclamar, como se estivesse tudo bem. Mas nada estava bem. Como de costume, em 5 minutos meu ônibus chegou. A mulher me avisou, eu agradeci e disse: “Boa espera”.
Como convivo com esse tipo de comentário constantemente posso dizer que é, no mínimo, revoltante. Aguentar frases como essa todos os dias incomoda, irrita. cansa e desanima.
Só para completar, no dia seguinte (sem nem um diazinho de descanso) sou atacada por outra pessoa que me trouxe uma nova pérola para minha coleção de causos. Uma pessoa me deu lugar para sentar no ônibus. Agradeci e sentei simplesmente. A pessoa então, para variar, largou sua pérola.
“- Mas tu tem os olhos tão bonitos, nem parece!”.
Contei até três e perguntei:
“- Não parece o quê?”
“- Que você não enxerga…”
“- Eu enxergo um pouco, tenho baixa visão.”
E a pessoa insistiu:
“- Ah, consegue ver só os vultos das coisas então Mas teus olhos são azuis, são tão bonitos! Nem parece…”
Virei para o lado com vontade de chorar, de me jogar no chão, de espernear, de mandar a criatura tomar naquele lugar. Porra, será que uma pessoa com deficiência visual tem que necessariamente ter olhos feios? Uma pessoa com deficiência não pode ter olhos bonitos? Por que a deficiência está assim relacionada a algo feio?
Se ela estivesse simplesmente elogiando meus olhos são bonitos, tudo bem, mas o contexto não era esse. “Mas teus olhos são azuis, são tão bonitos. Nem parece…”. A fala ecoou dentro de mim como um novo tiro, um novo ataque de arma de fogo.
Qual o sentido da conjunção “mas”? Conforme aprendi na escola, “mas” é uma adversativa, ou seja, significa uma oposição, uma contrariedade. Nesse caso “mas teus olhos são tão bonitos” é uma oposição ao fato de ter uma deficiência visual.
Irritação. Revolta. Impotência. Fúria. Incapacidade de mudar o mundo e, principalmente, de mudar a cabeça das pessoas.
Gostaria de viver em um planeta em que ter alguma peculiaridade física fosse uma normalidade, algo comum. Afinal, há tanta gente com deficiência por ai.
Na minha opinião, as pessoas que fazem esses comentários-pérolas para mim na rua – e entram para o meu caderninho de causos lamentáveis – já têm, sem dúvidas, suas próprias deficiências. Sim, uma deficiência ou problema psicológico. No bom português, falta de “simalcol”.
Sei que há muita falta de informação e que a população às vezes sequer sabe que existem pessoas com baixa visão no mundo. Por isso, talvez essas pessoas fiquem espantadas. Eu não as culpo pelo desconhecimento. Mas não conhecer o tema não é justificativa para falta de sensibilidade, educação e respeito.