Arquivo da tag: bengala

Quebrando bengalas

Eu tinha 22 anos quando precisei romper com minha antiga forma de andar, me deslocar e me locomover pelas ruas, pelas calçadas e pela vida. Até esta idade eu tinha um razoável nível de visão, que me permitia fazer meus trajetos sem a utilização de bengala. Foi nesta idade que, logo terminando a faculdade, fui assolada por uma nova e indesejada condição, que me levou a romper com minha antiga forma de ser e estar neste mundo.

Minha visão diminuía pouco a pouco, de forma contínua e ininterrupta. Ia embora imperativamente sem me pedir licença, sem que u pudesse me preparar, sem que eu pudesse sequer me despedir, sem que eu pudesse dizer tchau para aquele mundo ainda tão visual… Eu não acreditava que fosse acontecer comigo.

Era o ano de 2007. Mês de dezembro, estava me formando em Jornalismo. Recém contratada no Jornal Correio do Povo, da Companhia Caldas Junior, no centro de Porto Alegre. Estava vibrante e orgulhosa com meu primeiro emprego de carteira assinada como jornalista. Uma grande conquista para uma foca, como são chamados os recém-formados na profissão. Trabalhava em um setor denominado Central de Textos, que só pelo nome já me enchia de orgulho e motivação. Sempre fui amante dos textos e da literatura, e justamente por isso fui para o Jornalismo.

Acontece que meu horário de trabalho iniciava às 18horas, na avenida Caldas Junior. Produzia o fechamento da edição impressa que precisaria estar pronta na manhã seguinte. Precisava descer do ônibus no Mercado Público e caminhar boas quadras até o jornal. No percurso, muitas calçadas quebradas, vendedores ambulantes, utensílios expostos no chão, bueiros abertos, fios de aço atravessados, obstáculos diversos, além do calçadão da Rua da Praia e da praça da Alfândega para atravessar até chegar na sede do jornal. Tudo isso no horário do lusco-fusco do final do dia, com uma multidão de pessoas apressadas para voltar para casa. Com pouca luminosidade minha baixa visão caía ainda mais e meus olhos já não podiam identificar tantas coisas pelo caminho a ponto de comprometer minha integridade física.

Eu não sabia como seria dali para frente, mas desistir daquele emprego, do jornalismo, dos meus propósitos, da minha própria vida não estava nas possibilidades.

Lembro nitidamente das minhas lágrimas no rosto, dos meus joelhos e mãos machucados depois de mais um tombo, dessa vez em grades que cercavam um canteiro de flores na Praça da Alfândega, e, após o ocorrido, a colega Anália Feijó conversando comigo no banheiro da redação. Eu não chorava apenas pelo tombo em si, eu chorava em despedida da visão, que como água ia escorrendo das minhas mãos e eu não tinha qualquer controle sobre isso.

Tentava segurar aquele pouco de visão que ainda tinha, mas as quedas constantes e os riscos que eu vinha me colocando eram a confirmação de que aquele sentido que é tão caro e central na vida das pessoas de fato estava deixando de fazer parte da minha vida. Era como se eu quisesse segurar água com as mãos. Podia fazer uma concha, segurar um poco, mas não adianta. Quanto mais eu andava, mais aquela água ia escorrendo por entre os dedos. A medicina não inventara nenhum recipiente que segurasse aquele resíduo de visão em meus olhos e, como água entre os dedos, ela ia indo embora para nunca mais voltar.

Anália tinha idade para ser minha mãe, um carinho e um coração imensos. Foi depois daquela conversa, daquele desabafo, daquele colo amigo, dela escutar meus prantos que decidi que daquele dia em diante não sairia mais de casa sem a bengala nas mãos.

Não foi uma decisão fácil. Eu já não era mais uma adolescente, mas me passavam coisas pela cabeça como: O que os outros vão pensar? Como vou aparecer de bengala em determinado local onde todos já me conheciam sem bengala? O que vão perguntar? O que eu vou dizer? Como vou me comportar?

E foi assim, sem as respostas para estas e tantas outras perguntas, que a Mariana que podia andar nas ruas sem bengala, que conseguia ver e desviar das coisas, já não podia mais.

A bengala passou a me acompanhar, não somente nas idas ao jornal, mas em todos os outros percursos. As lágrimas no meu rosto já não escorriam mais, os tombos e tropeços haviam deixado de acontecer, pois eu estava mais segura. Com o passar das semanas e meses, olhava para minha bengala, outrora novinha, lisa e intacta, começando a ficar detonada, com alguns arranhões, descascando e lá pelas tantas até ficou torta e guenza, obrigando-me a comprar outra.

A destruição rápida da minha primeira bengala foi simbólica e representativa. Se não fosse a bengala a estar destruída, estaria meu próprio corpo. E talvez minha vida. Cada marca impressa naquela bengala representou um fortalecimento emocional. Cada novo obstáculo que eu não teria percebido com os olhos significava uma vitória sob a inércia, sob a tristeza, sob os lamentos e sob a frustação de tudo que a perda da visão representa na vida de uma jovem recém-formada e com o mundo a desbravar.

A bengala, aparentemente um objeto rechaçado e nada desejado, significou minha autonomia e minha liberdade para ir e vir. Significou não parar, não me entregar, não desistir. Proteger a mim mesma utilizando a bengala era sinal de cuidado e respeito pela pessoa que sou.

Rompi com um passado de quem podia ver, rompi com um passado de quem enxergava o mundo com olhos que funcionavam bem mais. E isso trouxe repercussões importantes nos meus relacionamentos. As pessoas passaram a entender por que eu passava reto por elas sem cumprimentar, por que muitas vezes andava com a cabeça baixa e arrastando os pés, por que não gostava de restaurante que possuía buffet para se servir, por que negava convites para ir ao cinema, por que não conhecia os atores da moda, as séries, os filmes e lançamentos em cartaz, por que muitas vezes subia no ônibus errado, entre tantas outras situações difíceis ou constrangedoras.

Este rompimento trouxe-me maior leveza para lidar com situações como essas, sem me cobrar tanto, autorizando-me a pedir auxílio, negando convites para ir a locais onde não me sentiria bem. Passei a viver o mundo através de outros sentidos. Passei a não ser mais confundida com uma pessoa tímida, introvertida e até mal educada ou esquisita.

Dezessete anos já se passaram desde que passei a utilizar bengala – primeiro a verde e atualmente a branca. Perdi as contas de quantas bengalas já utilizei, quantas já quebrei, quantas bengalas novas já comprei.

Rompi, primeiro com um passado em que podia andar com as mãos livres. Depois, precisei romper com aquela tentativa de equilibrar e carregar água por entre os dedos. Parei com a tentativa de segurar o insegurável, de controlar o incontrolável. Deixei a água ir embora, pelos meus olhos que choraram até secar e pelas minhas mãos que se abriram para segurar a bengala. Precisei optar: ou segurava a água ou segurava a bengala. E fico feliz com as escolhas e trajetos percorridos desde então. Este ano faço 40 anos, uma data marcante, na qual certamente poderei dizer para mim mesma: que venham muitas e muitas bengalas quebradas pela frente!

O que a bengala me ensinou?

Com a bengala eu aprendi a não ter vergonha de ser eu mesma. Com a bengala em aprendi a não disfarçar meu problema de visão. Com a bengala, passei a ser mais espontânea, discontraúida e autêntica. Passei a rir mais, fazer mais piadas e até a contar histórias engraçadas sobre quando não enxergo alguma coisa e passo por situações cômicas.

Com a bengala eu aprendi a ser menos ansiosa. Percebi que precisava literalmente dar um passo de cada vez – embora minhas pernas quisessem correr mais rápido. Aprendi que preciso tatear o caminho para dar o próximo passo. Aprendi que, mesmo que eu saiba onde quero chegar e quantos metros existem até lá, isso não basta – é preciso saber como chegar até lá, como percorrer o trajeto desejado, por onde passar ou por onde desviar. Isso vale para atravessar uma praça cheia de obstáculos, com raízes de árvores, orelhões e obras ou para atravessar os problemas filosóficos e cotidianos da vida.

Com a bengala aprendi a ser mais humilde. Aprendi a aceitar ajuda para atravessar a rua, a ser menos auto-suficiente e menos rígida comigo mesma. Aprendi a valorizar um braço amigo de alguém que se oferece para me ajudar e muitas vezes, sem sequer me conhecer, já me tirou de situações perigosas.

Com a bengala aprendi que para os amigos de verdade eu sou a mesma pessoa usando a bengala ou não – com ela aberta ou fechada, com ela na bolsa ou não. O importante para eles é meu sorriso no rosto e o estado emocional em que me encontro. Percebi que muitas pessoas me tratam de forma diferente por eu portar esse instrumento que representa a deficiência visual, querendo me proteger, falar de forma pejorativa ou até se afastando de mim. Essa realidade pode parecer cruel, mas pior ainda seria não percebê-la e não ter consciência de que ela existe.

Com a bengala aprendi que o que importa no ser humano é a humildade, a lealdade e a cumplicidade. Com a bengala aprendi que conquistar um grande amor pode ser uma questão de tempo, mas que inevitavelmente acontecerá. Um belo dia você irá esbarrar em uma pessoa especial em uma mesa de bar ou em uma esquina qualquer.

Com a bengala aprendi a dar valor para o que realmente importa nessa vida. Aprendi a dar tchau para o que não interessa mais, a valorizar as amizades que me completam, a me amar e a me aceitar intensamente e de verdade da forma que eu sou. Aprendi a amar a vida que está pulsante por toda parte – por onde posso tocar com a bengala e por onde posso tocar com minha sensibilidade.

Mais do que tudo isso, percebi que meus sonhos ultrapassam todos os obstáculos físicos do mundo. Aprendi que existem barreiras no caminho e que – concretamente – precisam ser contornadas, mas quando realmente acreditamos em algo qualquer dificuldade pode ser superada. Não há limite para os sonhos. E quando o sonho é verdadeiro, será realmente alcançado.

Obrigada bengala! Obrigada vida!

A bengala da sorte

Não estou muito acostumada a furar filas por ter deficiência visual. São vários os motivos. Primeiro porque fico meio constrangida em pensar que estou tirando algum tipo de “proveito” ou vantagem disso. Depois porque as pessoas não entendem o que é baixa visão e às vezes pensam que estou “fingindo” e querendo me aproveitar de uma situação. O meu problema não é muito aparente (para quem olhar os meus olhos), o que dificulta ainda mais a minha identificação como tendo uma deficiência visual.

Contudo, ter a preferência nas filas é um direito que eu tenho – e que não pode ser contestado. Essa lei existe na constituição nacional e está ai para ser cumprida.

Já furei muitas filas em ambientes que julgo “justificável” minha preferência, como, por exemplo, em fila de banco ou em fila de lojas. No banco, entendo que eu tenha preferência, visto que preciso entrar em uma agência toda vez que quero tirar dinheiro. Não consigo usar o caixa eletrônico por falta de acessibilidade nos terminais. Nesse caso, furo a fila sem “culpa”. Isso ocorre também em uma loja em que eu precise de ajuda por não encontrar sozinha um determinado produto. Ou ainda, para pegar o ônibus também exerço meu direito à preferência na fila por ser realmente uma situação complicada para mim – visto que não identifico qual o meu ônibus e tenho que perguntar para os motoristas.

Mas esse final de semana foi a primeira vez em que furei a fila para entrar em uma festa. Fui em um bar irlandês aqui em Porto Alegre. Era uma festa de Patrick’s Day (Dia de São Patrício), uma data sem tradição no Brasil, mas comemorada em países de língua inglesa no dia 17 de março. A data marca a celebração de um dia de sorte, em que as pessoas usam roupas verdes e as figuras de trevos são a decoração principal.

Confesso que eu e minha amiga Renata Lontra só fomos lá por dois motivos: primeiro porque quem estivesse vestindo roupa verde ganhavam um chope grátis (hehehehe) e segundo porque era uma festa muito comentada e sempre com muito público.

Chegamos no local super cedo e nos deparamos com uma fila gigantesca quase dobrava a esquina. A Renata disse que não iríamos conseguir entrar, que estava impossível e teríamos que ir para outro lugar. Apontei para a bengala e disse para não desistirmos, que aquilo iria “abrir caminhos”. E, de fato, foi o que aconteceu.

Fomos até a porta, no início da fila. O recepcionista olhou para nós – eu com a minha bengala elegantemente aberta – e disse que poderíamos entrar. Naquele momento senti que a sorte – celebrada nessa data – estava do meu lado.

A fila era tanta que tinha gente comprando inclusive uma camiseta por 50 reais que dava direito a entrada preferencial no bar. Algumas pessoas disseram que ficaram na fila por mais de duas horas. Simplesmente inacreditável. E eu tinha furado a fila enorme. Que maravilha!

Entrei sem culpa nenhuma por estar furando a fila, sem constrangimento ou vergonha – ao contrário do que provavelmente ocorreria tempos atrás. Minha amiga e eu comemoramos muito, pois realmente não iríamos conseguir entrar se não fosse pela minha bengala, que estava me trazendo sorte! Aliás, eu não teria paciência para esperar por mais de meia hora do lado de fora. E quando formos embora do bar, a fila continuava grande, com muita gente aguardando para entrar.

Mais do que simplesmente entrar no local, furar a fila naquele momento representou um marco importante na minha vida. Representou eu poder me divertir com essa situação. Ir em um local descontraído, com o objetivo de puramente me divertir, ouvir música, conversar, tomar um chope, falar bobagens. Pude fazer tudo isso usando minha bengala, sem achar que ela fosse um problema ou que fosse “errado” eu estar usufruindo de um direito que eu tenho.

A bengala foi uma solução real e imediata para o problema que se apresentou diante de nós (a interminável fila). Em outras situações a bengala era um motivo de estresse. E nesse momento foi motivo de alívio e felicidade.

Consegui finalmente inverter minha própria visão dos fatos. A lógica que até então eu vinha acostumada era a de só usar a bengala em situações críticas e de risco ou em momentos tensos e difíceis. Pude, dessa vez, usá-la para em minha descontração e lazer.

Às vezes ainda é muito difícil “aproveitar” os benefícios, as facilidades e as coisas boas da deficiência. Poder me divertir com ela, ter isso como algo leve, ainda é algo muito difícil.

Mas estou feliz e orgulhosa em concretizar esse desafio. Tenho uma bengala da sorte, que me trouxe sorte no Patrick’s Day e tenho certeza que vai trazer sorte em outros diversos momentos.

Ganhei um chope verde gratuitamente (sim, o chope era verde!), furei a fila e me diverti na festa ao lado de uma grande amiga. Tenho muitos motivos para comemorar. Uma bela experiência para uma nova fase da vida.

Não apenas o fato do chope ser verde foi inusitado e quebrou paradigmas, mas o meu próprio posicionamento diante dessa situação. Viva minha bengala da sorte! Só faltava ela ser verde também (mas é amarela)… ehehehehe.

Na foto, eu sorrindo, vestida de blusa verde e lenço verde no pescoço. Estou sentada na mesa do bar, segurando o copo de chope verde para frente. O copo é bem grande e está quase cheio. Há algumas pessoas ao fundo, em um ambiente escuro.

Obra mal sinalizada causa acidente

A leitora e minha amiga Tatiane Soares Jesus me escreveu essa semana relatando um episódio lastimável e pediu que eu o compartilhasse no blog. Vamos ao fato, nas palavras dela:

 

“Eu estava essa terça-feira (29/11) saindo do supermercado com a minha afilhada, às 21h. Voltando pra casa, passei por uma loja (Secreta Vaidade, na avenida Protásio Alves, 278, bairro Rio Branco) que estava em obras.

Havia na calçada vários obstáculos no caminho e alguns cavaletes de ferro que batem na altura da barriga.

Na nossa frente caminhava um casal. Eu vinha mais atrás e só enxerguei a bengalinha da moça, mas como ela estava acompanhada continuei a conversar com minha afilhada.

Só que os dois tinham baixa visão. Quando escutei um “ai. ai” eles já tinham batido de barriga nos cavaletes. Bateram, mas não chegou a espetar nenhuma ponta neles graças a Deus.

Eles começaram a reclamar. Então chegaram dois funcionários da obra e ficaram parados sem falar com eles, como se já estivessem ali cuidando pra ninguém cair e eles é que não viram…

Logo depois que o casal foi andando apareceu uma mulher na porta, que parecia a dona, e eu falei: “Eles se machucaram, tem que ter alguma sinalização aqui”. E ela só ficou me olhando e não me respondeu nada.

Na hora só pensei em ajudar o casal a chegar até a parada de ônibus que eles queriam. Mas toda essa situação me deu muita raiva!”

 

Episódios como esse relatado pela Tatiane, infelizmente, são muito comuns, Cavaletes podem ser ótimos sinalizadores para as pessoas que enxergam com perfeição. Mas para os deficientes visuais representam uma armadilha.

 

Nos cavaletes há uma estrutura de madeira (ou outro material) suspensa e, por isso, não identificável pela bengala, que toca somente o chão. A pessoa só percebe sua presença quando já bateu o próprio corpo no objeto – o que pode ocasionar acidentes graves.  

 

No caso de placas, fios de aço (atravessados nas calçadas), orelhões, galhos de árvores, entre outros, a bengala também não os capta. Por isso representam um grande risco à segurança de pessoas com deficiência visual.

 

Mais do que isso, tais obstáculos desrespeitam os direitos humanos. Qualquer pessoa tem o direito de ir e vir e de transitar com liberdade, segurança e autonomia por calçadas e ruas da cidade.

 

Para uma devida sinalização é preciso que qualquer obra, principalmente em calçadas, seja devidamente identificada com piso tátil ou marcações na altura do chão que permitam ao deficiente visual desviar corretamente.