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A bengala da sorte

Não estou muito acostumada a furar filas por ter deficiência visual. São vários os motivos. Primeiro porque fico meio constrangida em pensar que estou tirando algum tipo de “proveito” ou vantagem disso. Depois porque as pessoas não entendem o que é baixa visão e às vezes pensam que estou “fingindo” e querendo me aproveitar de uma situação. O meu problema não é muito aparente (para quem olhar os meus olhos), o que dificulta ainda mais a minha identificação como tendo uma deficiência visual.

Contudo, ter a preferência nas filas é um direito que eu tenho – e que não pode ser contestado. Essa lei existe na constituição nacional e está ai para ser cumprida.

Já furei muitas filas em ambientes que julgo “justificável” minha preferência, como, por exemplo, em fila de banco ou em fila de lojas. No banco, entendo que eu tenha preferência, visto que preciso entrar em uma agência toda vez que quero tirar dinheiro. Não consigo usar o caixa eletrônico por falta de acessibilidade nos terminais. Nesse caso, furo a fila sem “culpa”. Isso ocorre também em uma loja em que eu precise de ajuda por não encontrar sozinha um determinado produto. Ou ainda, para pegar o ônibus também exerço meu direito à preferência na fila por ser realmente uma situação complicada para mim – visto que não identifico qual o meu ônibus e tenho que perguntar para os motoristas.

Mas esse final de semana foi a primeira vez em que furei a fila para entrar em uma festa. Fui em um bar irlandês aqui em Porto Alegre. Era uma festa de Patrick’s Day (Dia de São Patrício), uma data sem tradição no Brasil, mas comemorada em países de língua inglesa no dia 17 de março. A data marca a celebração de um dia de sorte, em que as pessoas usam roupas verdes e as figuras de trevos são a decoração principal.

Confesso que eu e minha amiga Renata Lontra só fomos lá por dois motivos: primeiro porque quem estivesse vestindo roupa verde ganhavam um chope grátis (hehehehe) e segundo porque era uma festa muito comentada e sempre com muito público.

Chegamos no local super cedo e nos deparamos com uma fila gigantesca quase dobrava a esquina. A Renata disse que não iríamos conseguir entrar, que estava impossível e teríamos que ir para outro lugar. Apontei para a bengala e disse para não desistirmos, que aquilo iria “abrir caminhos”. E, de fato, foi o que aconteceu.

Fomos até a porta, no início da fila. O recepcionista olhou para nós – eu com a minha bengala elegantemente aberta – e disse que poderíamos entrar. Naquele momento senti que a sorte – celebrada nessa data – estava do meu lado.

A fila era tanta que tinha gente comprando inclusive uma camiseta por 50 reais que dava direito a entrada preferencial no bar. Algumas pessoas disseram que ficaram na fila por mais de duas horas. Simplesmente inacreditável. E eu tinha furado a fila enorme. Que maravilha!

Entrei sem culpa nenhuma por estar furando a fila, sem constrangimento ou vergonha – ao contrário do que provavelmente ocorreria tempos atrás. Minha amiga e eu comemoramos muito, pois realmente não iríamos conseguir entrar se não fosse pela minha bengala, que estava me trazendo sorte! Aliás, eu não teria paciência para esperar por mais de meia hora do lado de fora. E quando formos embora do bar, a fila continuava grande, com muita gente aguardando para entrar.

Mais do que simplesmente entrar no local, furar a fila naquele momento representou um marco importante na minha vida. Representou eu poder me divertir com essa situação. Ir em um local descontraído, com o objetivo de puramente me divertir, ouvir música, conversar, tomar um chope, falar bobagens. Pude fazer tudo isso usando minha bengala, sem achar que ela fosse um problema ou que fosse “errado” eu estar usufruindo de um direito que eu tenho.

A bengala foi uma solução real e imediata para o problema que se apresentou diante de nós (a interminável fila). Em outras situações a bengala era um motivo de estresse. E nesse momento foi motivo de alívio e felicidade.

Consegui finalmente inverter minha própria visão dos fatos. A lógica que até então eu vinha acostumada era a de só usar a bengala em situações críticas e de risco ou em momentos tensos e difíceis. Pude, dessa vez, usá-la para em minha descontração e lazer.

Às vezes ainda é muito difícil “aproveitar” os benefícios, as facilidades e as coisas boas da deficiência. Poder me divertir com ela, ter isso como algo leve, ainda é algo muito difícil.

Mas estou feliz e orgulhosa em concretizar esse desafio. Tenho uma bengala da sorte, que me trouxe sorte no Patrick’s Day e tenho certeza que vai trazer sorte em outros diversos momentos.

Ganhei um chope verde gratuitamente (sim, o chope era verde!), furei a fila e me diverti na festa ao lado de uma grande amiga. Tenho muitos motivos para comemorar. Uma bela experiência para uma nova fase da vida.

Não apenas o fato do chope ser verde foi inusitado e quebrou paradigmas, mas o meu próprio posicionamento diante dessa situação. Viva minha bengala da sorte! Só faltava ela ser verde também (mas é amarela)… ehehehehe.

Na foto, eu sorrindo, vestida de blusa verde e lenço verde no pescoço. Estou sentada na mesa do bar, segurando o copo de chope verde para frente. O copo é bem grande e está quase cheio. Há algumas pessoas ao fundo, em um ambiente escuro.

A audiodescrição precisa dominar o mundo!

Existe algo de extraordinário acontecendo. A audiodescrição (AD) está ganhando força e invadindo novos espaços!

Ainda estou incrédula diante do grupo Tholl que assisti essa semana no Salão de Atos da UFRGS com audiodescrição.

Um espetáculo circense (http://www.grupotholl.com) – com acrobacias, dança, jogo de luzes, malabarismos, números com fogo – foi acessível também a pessoas cegas e com baixa visão.

A experiência foi, para mim, uma quebra de paradigmas. Eu já havia deixado de assistir ao Tholl anos atrás quando minha prima Andjara, de Minas Gerais, veio visitar Porto Alegre.

Na época, toda minha família foi ao evento no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Embora tivesse vontade de ir, não fui por saber que se tratava de algo essencialmente visual. O ingresso era caro e eu não iria pagar caro por algo que eu sabia que não iria “aproveitar”.

Sabia que havia muitas informações e elementos visuais para serem apreciados, o que iria dificultar minha compreensão.

Hoje, cerca de quatro anos depois, tenho o prazer de contar que finalmente assisti ao espetáculo, contando com um excelente trabalho de AD. Algo realmente profissional feito pela Letícia Schwartz, da empresa Mil Palavras.

Para o bom trabalho de AD a sensibilidade é essencial. E isso a Letícia tem de sobra. É por isso que o trabalho dela é tão impressionante. Ela conseguiu, ao vivo (assistindo ao espetáculo de dentro da cabine onde se faz a tradução simultânea – mas que prefiro chamar de cabine da AD), passar emoção e vivacidade às cenas que descrevia.

Eu e algumas outras pessoas com deficiência visual pudemos entrar mais cedo no Salão de Atos da UFRGS, conhecer os atores, as fantasias e acessórios usados por eles bem de pertinho. Pudemos tocar as fantasias, enfeites, sapatos, botas, chapéus, perucas usados pelos atores, além de conversar com eles. Me apaixonei pela menininha de sete anos, uma das estrelas do evento.

Pudemos nos sentir situados no ambiente, antes mesmo do espetáculo começar.

Depois, sentados na terceira fila, com fones de ouvido (o mesmo aparelho usado para tradução simultânea de palestras em outro idioma) escutamos à AD feita pela Letícia.

Em que momentos a AD foi importante no Tholl?

Através da AD percebi exatamente quais eram os pontos em que eu teria me perdido. Muitas vezes eu via os personagens no palco e os movimentos que faziam, mas não conseguia ver suas feições e expressões de rosto.

A AD é perfeita também para pessoas com baixa visão, pois preenche justamente as lacunas na minha percepção.

Ao colocar, por exemplo, que a menina faz “expressão de triste” pude entender o sentido da cena. Se eu não soubesse a feição de seu rosto, não teria entendido a cena em sua plenitude.

Quando o personagem principal chama duas pessoas da plateia ao palco e se comunica com elas através de mímicas e gestos a AD também foi essencial.

O ator brinca com o cabelo cheio de trancinhas de um dos homens que subiu ao palco, puxa uma das trancinhas e finge que coloca no próprio cabelo. Nesse momento, o público todo riu. Ao mesmo tempo, a AD narrou o que estava acotnecendo e eu pude rir da cena. Seria algo engraçado que passaria batido, sem que eu pudesse me divertir.

É mágica essa sensação de rir, ao mesmo tempo, sem precisar perguntar sussurrando para pessoa do lado por que as pessoas riram.

Cenas muito escuras igualmente eram complicadas. Houve vários momentos em que a iluminação diminuía e os atores dançavam com tochas de fogo. A AD me “salvou” em vários momentos.

São detalhes que não são somente detalhes. Detalhes que, somados, são a essência da peça. O que seria do espetáculo sem as piadas, as coisas engraçadas, as acrobacias, as danças, a beleza dos atores, das cores, das luzes?

Como poderia uma pessoa com deficiência visual apreciar esse espetáculo? Por que a pessoa com deficiência tem que ficar em casa enquanto todos saem para assistir a um evento tão fantástico?

Um espetáculo essencialmente visual, não pensado para pessoas cegas ou com baixa visão. Contudo, nesse momento, tornou-se acessível a mais pessoas.

O Tholl se atingiu um público jamais pensado como seu público-alvo. Pessoas que, muitas vezes, não são lembradas, mas que querem consumir cultura, sair de casa, rir, se divertir, aproveitar a vida.

Hoje penso que fico triste de não ter compartilhado daquele momento com minha família no Theatro São Pedro. Porém, fico feliz em perceber que essa realidade está mudando.

Na saída do evento, os atores vieram conversar conosco. Eu fiz questão de ressaltar a importância da AD e sugeri que o espetáculo a incorpore em todas as suas apresentações.

Num passo adiante, almejo que esse recurso seja algo comum e rotineiro em todos os lugares. Que eu e outras pessoas com deficiência visual não sejamos “exceções” nesses espaços.

Que a nossa presença chame menos atenção do restante do público (por estarmos ali com fones de ouvido e isso gerar curiosidade nos demais). Que todos saibam do que se trata a AD, conheçam, respeitem e incentivem sua ampliação.

É por isso que brinco (mas estou falando sério), que a audiodescrição precisa dominar o mundo!