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Minha experiência enquanto jornalista com baixa visão

O fato de eu ter me tornado jornalista com baixa visão está causando curiosidade e interesse aos leitores do Três Gotinhas. Esse mês recebi dois emails do público leitor me questionando sobre isso. Um foi de uma estudante de São Paulo, que tem 18 anos e está decidindo o curso que vai fazer no vestibular, Ela se interessa muito pela área do Jornalismo e quer saber quais as facilidades e dificuldades da profissão para quem tem alguma deficiência visual.

O outro email foi de uma leitora, que já é jornalista formada e, assim como eu, tem baixa visão. Ela escreveu perguntando como é possível trabalhar em televisão e como eu faço já que não consigo ler o teleprompter. Fiquei muito feliz em receber esses emails, pois realmente gosto de compartilhar experiências com as pessoas. E gosto também quando as pessoas compartilham suas histórias comigo. (Aliás, vocês sabem que contribuições para o blog são sempre super bem-vindas!!!),

Contando então um pouco sobre minha experiência… Me formei em Jornalismo pela PUC-RS em 2007 e fiz mestrado em Letras pela UFRGS (que conclui em 2012). Na minha opinião nenhuma profissão é fácil para ninguém. Para quem tem qualquer deficiência física, terá invariavelmente maiores dificuldades, seja no curso de formação, no mercado de trabalho ou na forma como a sociedade lida com as pessoas com deficiência.

Na graduação tive disciplinas complexas para quem tem deficiência visual, como jornalismo online, tv, fotojornalismo, edição de imagem, diagramação, entre outras. Jamais me senti privilegiada nas avaliações, sempre tive que fazer os mesmos trabalhos e provas que os colegas.

Na verdade, pelo fato de eu ainda não usar bengala na faculdade, acho que os professores não chegavam a ter a real dimensão da minha deficiência visual. Então sempre me trataram como qualquer aluno, me ajudando ou fazendo alguma adaptação apenas em casos extremos, onde eu realmente não conseguia resolver a situação por conta própria. Acabava eu mesma me adaptando às situações que surgiam. Contei com o apoio de muitos professores mais compreensivos, mas nem sempre isso ocorria.

No último ano de faculdade, fiz um estágio na Assessoria de Comunicação de uma empresa, no Polo Petroquímico, em Triunfo/RS, há mais de uma hora de ônibus de Porto Alegre. Trabalhava lá o dia todo, saía de casa às 6h30 da manhã, voltava direto para a faculdade (que tive de transferir para o turno da noite) e chegava em casa pelas 23h, Foi um ano puxado, mas bastante intenso, com muitos aprendizados.

O maior desafio foi estudar à noite. Minha dificuldade visual aumenta muito a noite. Durante o dia ou em ambientes com mais iluminação não tenho tanta dificuldade, mas estudar a noite era algo que eu realmente não tinha imaginado. Tive de quebrar esse e outros tantos medos e receios. Solicitei à faculdade maior iluminação no entorno do prédio.

Percebi que estava superando aquela dificuldade quando, aos poucos, fui me preocupando mais com o estágio, com o trabalho de conclusão e com a formatura do que com as dificuldades práticas de estudar a noite. A vida precisava seguir de qualquer jeito, independentemente de eu ter de fazer o curso no turno da manhã ou da noite ou de ter de me locomover pelo campus sozinha em um horário de iluminação escassa.

Devo dizer, porém, que nem tudo foram dificuldades. Sempre tive facilidade para ouvir e gravar informações, seja fazendo uma entrevista jornalística ou escutando os professores em aula. Não copiava do quadro, mas conseguia anotar ou simplesmente memorizar tudo o que eles falavam. Na verdade, sempre fiz isso desde a época do Ensino Fundamental e Médio. Era algo meio intuitivo e muito natural, que eu acabava fazendo em função da deficiência visual, sem nem mesmo me dar conta.

Hoje vejo o quanto foi importante fazer o curso de Jornalismo sem grandes “adaptações”, pois isso me deu uma boa base curricular. Sempre pensei que, até pelo fato de eu ter uma dificuldade a mais (que meus colegas não tinham), deveria ir muito bem no curso, tirar boas notas e ser bem eficiente naquilo que eu me propusesse a fazer. Sabia que o mercado não seria nada fácil, que a concorrência é grande em qualquer profissão e que, para mim, talvez as dificuldades fossem maiores.

Jamais imaginei trabalhar em uma emissora de televisão, até pelas dificuldades práticas que eu sabia que existiriam. Sempre me interessei mais pela produção de conteúdo editorial para revistas, jornal impresso ou online. Ou ainda, pela área de assessoria de imprensa, divulgação de eventos, comunicação empresarial.

Estou surpresa comigo mesma, nesse momento, por estar trabalhando agora em uma emissora de TV, a TVE do Rio Grande do Sul. Vejo que isso é possível – algo que eu não imaginava -, com pequenas adaptações. O fato de eu não ler o teleprompter não é um problema, pois sempre falei de improviso desde a escola nas apresentações de trabalhos. Então isso é algo que já estava, de alguma forma, “treinada” a fazer desde sempre.

Para eu focar a câmera certa, meus colegas do estúdio, levantam um papel branco para que eu saiba para onde devo olhar. As câmeras são pretas e ficam em um local mais escuro do estudio, o que não gera contraste. Então uma simples folha branca já resolve a situação. O meu computador, que fica na Redação, também é adaptado, com fontes ampliadas e as configurações corretas para mim.

Nas reportagens de rua, sempre conto com o auxílio dos colegas cinegrafistas, que ajudam muito, dão dicas e orientações sobre melhores locais para gravar e forma de me posicionar adequadamente. No momento de gravar os boletins para as reportagens, o fato de eu ter baixa visão acho que ate facilita as coisas. pois sei que muitas pessoas ficam curiosas em volta, querendo ver o que o repórter está fazendo ou mesmo tentando aparecer na TV. Como eu não vejo o que está acontecendo em volta, consigo me concentrar e focar somente na câmera e no trabalho que devo fazer. Consigo “desligar” a mente das interferências externas. É como se eu usasse a baixa visão a meu favor: vejo apenas a câmera na minha frente e aquilo que é necessário ser visto naquele momento.

Mas as maiores barreiras que eu encontrei até hoje não foram em relação à falta de acessibilidade arquitetônica ou em relação a adaptações necessárias no meu dia a dia. As maiores dificuldade foram – e ainda são – em relação ao comportamento e à falta de compreensao das pessoas. Infelizmente as empresas e até colegas de trabalho muitas vezes subestimam a pessoa com deficiência e pensam que não somos capazes de desempenhar funções básicas da profissão.

Além disso, no currículo das faculdades de Comunicação sinto que faltam disciplinas sobre acessibilidade na mídia. Disciplinas sobre audiodescrição, legendagem, libras, construção de sites acessíveis simplesmente não existem. Não fazem parte da grade curricular, nem mesmo como eletivas. Os estudantes precisam buscar esse conhecimento por conta própria, o que acaba formando profissionais despreparados para pensar os meios de comunicação acessíveis a todos.

Enfim, muito ainda temos o que evoluir, não apenas na área da Comunicação Social, mas na sociedade em geral. Apesar da Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, a qual o Brasil é signatário, garantir o acesso pleno da pessoa com deficiência às comunicações, ao lazer e ao entretenimento, muito ainda temos a avançar nesse sentido.

Minhas experiências na escola

Durante minha vida escolar passei por inúmeras dificuldades. Na Educação Infantil e no Ensino Fundamental o fato de eu ter deficiência visual (baixa visão) era muitas vezes confundido com ser uma pessoa tímida, com poucos amigos e problemas de relacionamento. Lembro de passar muitos recreios brincando na pracinha sozinha ou passeando pelos corredores da escola porque não encontrava onde estavam meus colegas. O pátio era muito grande, cheio de crianças, e isso me atrapalhava para identificar quem eram os meus colegas. Eu me sentia sempre sozinha e excluída. Essa é uma das principais lembranças (muito ruim, aliás) que tenho desse período escolar,

Quando fiquei mais velha, já no fim do Ensino Fundamental e início do Ensino Médio, percebi que eu não tinha problemas de relacionamento. Comecei a ter mais amigos, a me dar bem com as pessoas. Todos passaram a me chamar para eu identificar que eles estavam ali perto de mim. Não tinha mais o problema de “brincar” no pátio, mas ainda assim no intervalo eu tinha que saber onde as pessoas estavam para poder conversar com a turma.

Acho que no jardim de infância e séries iniciais faltou um pouco de sensibilidade dos professores para trabalhar essa questão da baixa visão com a turma e não deixar que eu estivesse sempre sozinha, me sentindo excluída. Acho que até eles acabavam acreditando e aceitando que eu tivesse problemas de relacionamento – sem entender realmente o que é baixa visão, as dimensões e as consequências disso.

Pintando a mesa
Lembro que em uma atividade de pintura (ainda no jardim) uma vez eu acabei pintando a mesa, pois me deram uma folha branca, pincel e tinta para desenhar em cima de uma mesa branca. Essa falta de contraste é terrível para mim ou para qualquer pessoa com baixa visão. Eu não sabia onde acabava a folha a começava a mesa.

Quando a professora viu o que aconteceu simplesmente limpou a mesa o mais rápido possível (como se tentasse esconder dos outros colegas o que havia acontecido e como se aquilo fosse um ato vergonhoso). Falou para eu ficar calma, que não tinha problema.

Mas para mim a situação foi muito constrangedora – e tinha problema sim. Me senti muito mal com a situação. A professora simplesmente limpou a mesa e disse para eu continuar pintando e fazendo o meu desenho “normalmente”, mas que eu deveria “cuidar” com a mesa. Algo simples para resolver a questão seria colocar um papel ou toalha de outra cor sobre a mesa branca… Creio que não é algo tão difícil de ser pensado ou imaginado, certo?

Lembro que, na ocasião, as outras crianças da turma ficaram fazendo piadas com a situação e dizendo que eu ia levar a mesa para casa… Foi horrível. Uma péssima lembrança que tenho desse período.

Hoje penso que eu poderia ter feito um belo trabalho artístico naquela mesa se não tivesse sido interrompida. Acho que inclusive tenho vontade de ter uma mesa para eu pintar todinha. Acho que ela ficaria bem bonita! Ehehehehe.

Educação Física
Outras situações difíceis aconteciam na aula de Educação Física. Tive que fazer atividades de bola até a 6ª série. Eu levava boladas no rosto porque não conseguia pegar a bola. Não tinha reflexos de velocidade e campo visual para saber de que lado vem a bola.

No vôlei, por exemplo, eu conseguia dar o saque e arremessar a bola por cima da rede, mas quando ela voltava eu não conseguia rebater (porque vinha muito rápido e eu não tinha esse reflexo).

Na verdade eu entrava na quadra, ficava toda retraída num canto, fugia da bola, fugia dos colegas. Fugia, pois não queria que ninguém me passasse a bola, sabia que não ia conseguir rebater. A Educação Física acabava reforçando a minha imagem como pessoa retraída, sem amigos e até anti-social.

O que era para os outros a aula mais esperada da semana para mim era a disciplina mais temida e detestada, As aulas de educação física eram intermináveis. Os minutos não passavam. Eu olhava no relógio a cada minuto e a aula não acabava nunca.

O dia da Educação Física era o dia que eu sempre queria ficar em casa. Aquela situação era horrível, Muitas vezes eu chorava antes de ir para aula porque sabia o que iria enfrentar. Quando era no primeiro período queria chegar atrasada de propósito…

A partir da 7ª serie então meus pais levaram um atestado medico dizendo que eu não poderia fazer atividades com bola. Daí a partir disso comecei a caminhar em volta da quadra enquanto os alunos jogavam. Hoje sei que não foi a melhor solução porque, ainda assim, não interagia com os demais e ficava isolada. De qualquer forma, na época foi muito bom, eu parei de ter pânico da Educação Física e de não querer mais ir para escola nesses dias. Nunca gostei da disciplina, mas pelo menos parou de ser um problema tão sério para mim.

Contudo, como eu “só” caminhava em torno da quadra esportiva e não fazia as coisas com bola (como era desejável), os professores sempre tinham a “brilhante ideia” de me pedir um trabalho escrito no final de cada bimestre. Eram trabalhos escrito para “compensar” o fato de não jogar bola.

Além disso, ironicamente esses trabalhos eram sempre sobre as regras de algum esporte com bola – vôlei, handball, do basquete etc. Todos esportes que eu não poderia jogar, o que acabava reforçando ainda mais um sentimento de exclusão naquela disciplina. Eu não jogava vôlei, mas tinha que fazer um trabalho escrito sobre suas regras. Qual o objetivo disso? De verdade me pergunto até hoje e não há uma resposta. Falta de sensibilidade e respeito, no mínimo!

Outras disciplinas
Nas demais disciplinas as matérias eram sempre ensinadas no quadro negro. Eu não conseguia copiar, mesmo sentando na 1ª fila. Como eu era muito esforçada e estudiosa, acho que os professores pensavam que não precisavam se preocupar comigo, pois eu “daria um jeito” de acompanhar a matéria ensinada.

E, de fato, era o que eu fazia. Me virava como podia e “dava um jeito”. Pedia caderno dos colegas emprestado para copiar. Levava o caderno para casa, às vezes tirava copia.

Lembro que cheguei na 1ª série já sabendo ler. Então muitas coisas ficaram mais fáceis. Quando a professora colocava no quadro coisas do tipo “ba- be – bi – bo – bu” eu já sabia escrever. Então ouvia o que ela dizia e escrevia. Sempre fui muito atenta em aula, desde criança. Acho que era uma forma de “compensar” o que eu não conseguia ler no quadro.

Quando as séries foram passando, algumas coisas ficaram mais complicado, pois as matérias como matemática, física, química usam muitos gráficos, números, formas geométricas e eram sempre ensinadas no quadro.

Meu pai sempre me deu aulas particulares de matemática em casa, além de química e física. Essas eram as disciplinas mais difíceis para mim. Sempre tive facilidade e gosto especial pelas humanas, como português, história, literatura e redação.

Ao longo de todo o período escolar nenhum professor me trazia impresso em letras grandes o que iria passar no quadro (como seria o ideal). As provas também não eram feitas em fontes ampliadas. Eu tinha uma lupinha de aumento que me ajudava, mas às vezes ainda tinha vergonha de usá-la. Quando criança era muito difícil assumir o fato de que eu realmente tinha uma deficiência visual. Não havia sala de recursos nem qualquer tipo de atendimento especializado para mim. E eu mesma não queria assumir essa condição ou essa posição de alguém que precisa de auxílio ou um atendimento especial.

Por sorte meu pai me “salvou” em todas as matérias da área das exatas. Sempre tinha aula particular com ele. E acho que era com ele que eu aprendia a maior parte das coisas que não conseguia acompanhar no quadro negro. Sua ajuda foi sempre essencial para que eu fosse aprovada nessas disciplinas. Mas não seria papel da escola providenciar esse apoio que eu precisava?

Apesar das dificuldades, nunca rodei e, aliás, tirava notas excelentes sempre. Só peguei recuperação uma vez. Acho que acima de tudo gostava de estudar. Talvez eu soubesse inconscientemente que teria que me esforçar bem mais em casa que os meus colegas.

Eu tinha a mesma capacidade para aprender que os outros, mas na medida em que não acompanhava o que era passado no quadro tinha que redobrar o esforço em casa. Ou seja, acabava tendo que me dedicar mais, despendendo mais tempo e mais esforço, principalmente com as exatas.

Disciplinas da área das humanas
Nas disciplinas humanas sempre ia muito bem. Uma vez ganhei um concurso de redação na escola. Escrevia poesia, contos, crônicas desde criança. Literatura sempre foi minha paixão.

Lá pelos dez anos criei um clube de cartas, em que muitas crianças e adolescentes do Brasil todo se correspondiam. O clube tinha um jornalzinho feito por mim, que era enviado para todos os “sócios”. Nesse jornal, eu colocava curiosidades sobre natureza, animais, ciência, informações sobre as cidades em que havia “sócios” do clube morando, entre outras coisas.

Em minhas correspondências eu trocava papel de carta, figurinhas, cartões postais e cartas propriamente ditas com gente de todo o Brasil O clube chegou a ter mais de 100 participantes, todos se correspondendo entre si. Até hoje guardo com carinho as cartas dos amigos que criei nessa época. Inclusive cheguei a conhecer alguns deles depois pessoalmente.

Encerro esse relato contando sobre o clube de cartas, que foi uma experiência muito positiva que tive durante minha infância e adolescência. Desenvolvi o hábito da escrita, da leitura, a curiosidade por conhecer outros lugares, os costumes e peculiaridades de outros pontos do país. Enfim, foi bem produtivo e emocionante. Cada carta era emocionante.

Enfim, não foram apenas coisas ruins que ocorreram durante meu período na escola. Meu objetivo em dividir essas experiências não é apenas contar as inúmeras dificuldades, mas mostrar como elas poderiamm ser evitadas. Com um mínimo de sensibilidade e bom senso novos alunos não precisariam passar pelos mesmos problemas.