Por: Fernanda Bastos, jornalista
Estamos passando por um período bastante difícil em nosso País. Além de as pessoas se negarem a ouvir as outras, alguns grupos políticos vão além, e querem impedir a evolução de quem quer sair da escuridão da ignorância. Se há dúvidas quanto a esse cenário, vide o caso da tentativa de criar uma campanha pública para vetar a vinda da pensadora Judith Butler ao Brasil e ainda a iniciativa do movimento Escola Sem Partido, que tentar fazer com que o Enem passe a permitir a intolerância e o incentivo a crimes, como o de racismo, nas redações.
Esses dois casos — poderia citar muitos outros — deixam claro que, para alguns, não basta fugir da busca de conhecimento e troca entre sujeitos, é necessário impedir que o outro siga em evolução.
Nessas iniciativas, fica evidente que, para determinados setores da nossa sociedade, é preciso negar o direito do outro; há um desejo implícito ou explícito de violar os direitos humanos.
E ainda vale observar o fato de que só o brasileiro vai perder com essa falsa disputa: as ideias de Butler seguirão circulando e impactando a vida de milhares de pessoas, bem como a noção de direitos humanos permanecerá como o alicerce para sociedades minimamente seguras.
Diante desse cenário trevoso, entretanto, sobressaem projetos que nos inspiram e fazem com que olhemos para a diferença ignorada no cotidiano. É o caso do livro Histórias de Baixa Visão, obra organizada pela jornalista Mariana Baierle que reúne 19 autores para falar dessa condição que atinge, ao todo, seis milhões de brasileiros.
Nos textos, os autores remexem no passado, buscando como se deu a perda do sentido, que pode ser originada por diferentes causas, e contando como passaram a conviver com a baixa visão. Muitos foram obrigados a ressignificar a própria existência, lidando com preconceitos e a dificuldade de aceitar o entre-lugar causado por ficar entre a cegueira e visão total.
Esse local muitas vezes gera incompreensão e intolerância. Relatos como o de Grazieli Dhamer e André Werkhausen Boone mostram que as dificuldades podem começam na escola, ambiente que deve ser moldado para lidar com a pluralidade, mas esbarra na falta de investimento e formação adequada. Na fase adulta, tomar a rua pode mostrar que são poucos os aliados e mutos os riscos até aliar independência e segurança. Histórias como a de Rafael Braz atestam que faltam condições e não esforço para que as pessoas com baixa visão possam ocupar empregos em qualquer setor e com todo tipo de qualificação. A superação da falta de entendimento e condições é o foco de outros relatos, mas o elemento que parece ser comum é a aceitação, processo descrito exemplarmente no emocionante relato de Rafael Martins sobre seu desejo de dirigir.
Cabe ainda à organizadora Mariana Baierle, logo no início, fazer um panorama da condição deste grupo, assinalando suas demandas e sua constituição nos campos político e legal.
Na minha leitura, o grande mérito da obra é sua constituição, pois não é sobre pessoas de baixa visão, mas com pessoas de baixa visão. Explico: o livro foi organizado e escrito por pessoas que vivem nessa condição e, portanto, do ponto de vista da narrativa, não há uma lupa voltada a esses sujeitos, mas um microfone direcionado às suas bocas, para que tenham voz e possam ser ouvidos. Isso faz da obra material de interesse para professores, estudiosos e também o cidadão comum, especialmente o do bem. Reafirmo: é uma obra sobre baixa visão com pessoas de baixa visão, mas não só voltada para elas.
Um conhecimento mínimo do mercado editorial brasileiro permite imaginar como foi árduo o trabalho para que essa obra chegasse aos leitores. O esforço conseguiu bancar a obra impressa pela editora CRV, mas o livro terá ainda volumes em braile e audiolivro, resultado de diversas parcerias. Isso permite que o texto chegue a mais pessoas e de forma acessível, grande mérito do empenho da organizadora. Histórias de baixa visão será lançado na Feira do Livro de Porto Alegre, no dia 18 de novembro às 15h na Sala Oeste do Santander Cultural. É por conta da importância indiscutível dessa obra como material de vivência e também marcação política em prol dos direitos humanos que estarei lá pronta para ouvir os autores e prestigiar essa iniciativa.