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O meu lado Mozart

Recentemente assisti a dois filmes com audiodescrição, que me marcaram muito – por motivos diferentes, mas que se relacionam entre si. Assisti a “Tropa de Elite” (um) e “Orquestra dos Meninos”.
O primeiro traz um enredo bastante conhecido pela maioria. Contudo, até então era um enredo desconhecido por mim. Eu já tinha tentado assistir a Tropa de Elite 1 no cinema (quando foi lançado em 2007) e depois em DVD, mas confesso que não tinha entendido o filme. Uma história de ação, com muitos personagens (a maioria do sexo masculino, o que dificulta sua identificação pelas vozes), com cenas escuras e que passam muito rápido. Eis um conjunto de dificuldades para quem tem baixa visão, motivo pelo qual a obra era até então uma incógnita para mim.
É difícil admitir isso (pois o filme foi lançado há muitos anos), mas finalmente, através da audiodescrição, posso dizer que assisti e entendi “Tropa de Elite”. Compreendi o significado, pela primeira vez, da frase “pede pra sair, pede pra sair” – frase que, por muitas vezes, me incomodou e deixou desconfortável por eu não saber seu significado. Foi uma frase recorrente após o lançamento do filme seja em uma roda de amigos, conversa de bar, uma piada na televisão ou em diferentes situações em que as pessoas repetiam isso e eu não entendia.
O segundo filme, baseado e fatos reais, é um drama, que conta a história de um menino pobre que sonha em ser maestro. Mozart Vieira é apaixonado pela música desde criança. Cresce no agreste nordestino, torna-se professor e consegue constituir uma orquestra que reúne 12 meninos pobres do município de São Caetano.
Uma série de acontecimentos, contudo, faz com que esse sonho do maestro seja várias vezes adiado. A trajetória de Mozart é permeada por dificuldades, problemas e até ameaças. O sequestro de uma das crianças do grupo, a ambição de políticos da região (que tentam se aproveitar da orquestra para arrecadar votos) e até a acusação de pedofilia e abuso sexual de menores são algumas das circunstâncias as quais Mozart se depara.
Ainda assim, ele persegue seus ideais. Mozart, sem um espaço para ensaiar com o grupo de alunos, cria a Fundação Música e Vida, que atende atualmente a 200 crianças da região, proporcionando a elas um futuro melhor através da música.
Fiz, a partir de “Tropa de Elite” e “Orquestra dos Meninos”, uma relação com minha própria vida. Às vezes, assim como Mozart, também passo por inúmeros problemas, obstáculos e episódios lamentáveis, que me cansam, desanimam e parecem me tirar as energias.
Às vezes acontecem coisas que me fazem pensar comigo mesma: “Pede pra sair, pede pra sair”. É como se algo dentro de mim quisesse me dizer para desistir – desistir de sonhar e de acreditar em coisas que insistem em dar errado. Acreditar em mundo que insiste em ter tantos problemas, corrupção e bandidagem às vezes parece uma mera ilusão.
São dois lados que lutam e se confrontam dentro de mim. Um diz “pede pra sair, pede pra sair” (como se dissesse: “desista” de tantos sonhos e ideais) e outro relembra o maestro Mozart Vieira e sua perseverança.
Duas faces de como podemos enxergar a realidade. Cabe a mim e a cada um optar por qual delas prefere ver o mundo e a própria vida.
Apesar de não saber música, tenho a convicção de que quero constituir minha própria orquestra – a orquestra da minha vida -, que irá semear, florescer e multiplicar sonhos e conquistas para mim e os outros.
O simples fato de estar assistindo a esses filmes com audiodescrição – o que, aliás, para mim não é nada simples, é um acontecimento incrível – me mostra que é possível sonhar com um futuro melhor e, mais do que isso, perceber mudanças e melhorias já no presente. É possível sonhar, sem ser tola ou ingênua. É possível sonhar e, de fato, alcançar nossos objetivos.
Sonho, entre tantas outras coisas, com o dia em que todos os cinemas do Brasil – em qualquer shopping, em qualquer lugar, em qualquer cidade – terão audiodescrição. Sonho, entre tantas outras coisas, que as pessoas irão se permitir sonhar, acreditar em si mesmas, em seus ideais e realizá-los.

Adivinhação

Vamos ver se você acerta essa!
Uma pessoa que não se importa se você é alto ou baixo; negro, branco ou mulato; gordo ou magro; loiro, moreno, careca… Alguém que não se interessa se a sua roupa está na moda ou não; se você usa um tênis de marca ou um chinelo de dedo. Alguém que não enxerga você pelo que você tem ou aparenta ter, mas pela pessoa que você é.

Alguém interessado em te conhecer, em entender teus valores, crenças e opiniões. Alguém que não te julga com um olhar superficial, mas desenvolve relações com sentimento e grandeza. Alguém que não te avalia em um minuto de convivência, mas através de uma conversa e da construção de uma convivência.

Alguém que não vê o que todos veem. Alguém que vê além do óbvio e banal, além do trivial e ingênuo. Uma pessoa que vê além do exterior. Alguém que não vê obstáculos físicos, mas é capaz de atingir o infinito.

Uma pessoa que vê o que ninguém mais vê.

Essa pessoa existe?

Sim. Cegos e deficientes visuais comprovam isso ao mundo. Se você pensou que essa pessoa não existia, tente – ao menos uma vez – enxergar a vida da forma como os cegos enxergam e verás que ela pode ser bem diferente.

Pérolas lamentáveis

Algumas pessoas emitem frases e opiniões, aparentemente banais, sem medir o alcance de suas palavras. As palavras podem ferir mais do que um tiro de revólver.
O momento de pegar ônibus em Porto Alegre é sempre uma situação crítica, pois preciso interagir com as pessoas e pedir para que elas me avisem quando vier meu ônibus.
Uma situação corriqueira, mas que, contudo, acaba me trazendo muito estresse. É o momento em que escuto comentários lamentáveis. Quando peço para alguém me avisar qual é meu ônibus, meu coração acelera. Sei que corro perigo de escutar coisas extremamente desagradáveis, vindos de pessoas sem sensibilidade alguma.
Talvez na tentativa de ser simpático ou de simplesmente não ficar em silêncio, não raras vezes meu interlocutor diz coisas sem pensar, que me deixam constrangida, para não dizer braba, furiosa, revoltada.
Esses dias pedi ajuda a uma senhora em uma parada na avenida Oswaldo Aranha. Ela respondeu que me avisaria quando viesse o meu ônibus, pois o dela ainda ia demorar uns 50 minutos. Perguntei para onde ela ia. “Para Alvorada, só que o ônibus só passa de hora em hora”, respondeu. Ela contou que, depois que seu ônibus chegasse, levava mais uma hora até em casa. “Nossa, que demora”, pensei. Até ai tudo sobre controle, mas a senhora continuou:
– “Tu não enxerga nada?”
– “Enxergo pouco senhora, tenho baixa visão”, respondi.
Até ai, tudo bem ainda. Estou acostumada a responder esse tipo de coisa e, de verdade, não me importo em falar sobre isso quando as pessoas agem com naturalidade e não falam coisas absurdas. Porém, como eu já esperava (pois sempre ocorre depois da pessoa começar a falar sobre esse assunto), a senhora largou a pérola do dia:
– “Ah, que bom que enxerga um pouco então! Graças a Deus! Mais triste ainda seria se não enxergasse nada!”
Contei até um milhão para não explodir e xingar aquele ser por todos seus antepassados. “Mais triste ainda seria se não enxergasse nada”. Aquela frase ecoou com violência, como um soco, como um tiro – que recebo constantemente de todos os lados.
Em primeiro lugar, não acho que a minha vida seja nem um pouco triste. Aliás, mesmo que fosse cega acho que minha vida não seria triste. Em segundo lugar, se tem algo triste nessa situação, para mim, é o fato da mulher morar em Alvorada, ter que esperar 50 minutos pelo ônibus e depois mais uma hora até chegar em casa. Na minha opinião isso sim é triste. Em duas horas de viagem eu chego na praia ou na serra! Eu em 15 minutos estaria dentro da minha casa.
Situações como essa são comuns, acontecem diariamente e me irritam diariamente. As pessoas não se dão conta do poder das palavras e de como seus comentários estão impregnados de preconceitos e estereótipos negativos. Por que um cego ou alguém com baixa visão precisa ter uma vida triste?
E o pior de tudo é que eu não podia brigar com a mulher que iria me avisar do meu ônibus. Eu ainda dependia de sua ajuda. Tive que ficar ali, firme, sem brigar, sem mandar ela longe, sem reclamar, como se estivesse tudo bem. Mas nada estava bem. Como de costume, em 5 minutos meu ônibus chegou. A mulher me avisou, eu agradeci e disse: “Boa espera”.
Como convivo com esse tipo de comentário constantemente posso dizer que é, no mínimo, revoltante. Aguentar frases como essa todos os dias incomoda, irrita. cansa e desanima.
Só para completar, no dia seguinte (sem nem um diazinho de descanso) sou atacada por outra pessoa que me trouxe uma nova pérola para minha coleção de causos. Uma pessoa me deu lugar para sentar no ônibus. Agradeci e sentei simplesmente. A pessoa então, para variar, largou sua pérola.
“- Mas tu tem os olhos tão bonitos, nem parece!”.
Contei até três e perguntei:
“- Não parece o quê?”
“- Que você não enxerga…”
“- Eu enxergo um pouco, tenho baixa visão.”
E a pessoa insistiu:
“- Ah, consegue ver só os vultos das coisas então Mas teus olhos são azuis, são tão bonitos! Nem parece…”
Virei para o lado com vontade de chorar, de me jogar no chão, de espernear, de mandar a criatura tomar naquele lugar. Porra, será que uma pessoa com deficiência visual tem que necessariamente ter olhos feios? Uma pessoa com deficiência não pode ter olhos bonitos? Por que a deficiência está assim relacionada a algo feio?
Se ela estivesse simplesmente elogiando meus olhos são bonitos, tudo bem, mas o contexto não era esse. “Mas teus olhos são azuis, são tão bonitos. Nem parece…”. A fala ecoou dentro de mim como um novo tiro, um novo ataque de arma de fogo.
Qual o sentido da conjunção “mas”? Conforme aprendi na escola, “mas” é uma adversativa, ou seja, significa uma oposição, uma contrariedade. Nesse caso “mas teus olhos são tão bonitos” é uma oposição ao fato de ter uma deficiência visual.
Irritação. Revolta. Impotência. Fúria. Incapacidade de mudar o mundo e, principalmente, de mudar a cabeça das pessoas.
Gostaria de viver em um planeta em que ter alguma peculiaridade física fosse uma normalidade, algo comum. Afinal, há tanta gente com deficiência por ai.
Na minha opinião, as pessoas que fazem esses comentários-pérolas para mim na rua – e entram para o meu caderninho de causos lamentáveis – já têm, sem dúvidas, suas próprias deficiências. Sim, uma deficiência ou problema psicológico. No bom português, falta de “simalcol”.
Sei que há muita falta de informação e que a população às vezes sequer sabe que existem pessoas com baixa visão no mundo. Por isso, talvez essas pessoas fiquem espantadas. Eu não as culpo pelo desconhecimento. Mas não conhecer o tema não é justificativa para falta de sensibilidade, educação e respeito.

A memória do silêncio

Você já ouviu o barulho da lata de refrigerante sendo aberta?

Você já ouviu o barulho das roupas tocando o seu corpo quando está se vestindo?

Você já ouviu o som de passar a mão sobre a calça jeans?

Você já ouviu o barulho de passar a mão no cabelo?

Você já reparou no som da voz das pessoas?

Você já ouviu o silêncio?

Será que você repara nos sons do cotidiano?

Não deixe de assistir:

[vimeo http://vimeo.com/27595997]