Era o dia 14 de março de 2020, uma quinta’feira. Eu trabalhava presencialmente no Instituto de Letras da UFRGS, no campus do Vale. O mundo assistia estarrecido a disseminação da pandemia do Covid19, iniciada na China e que nós, aqui no Brasil, ainda não tínhamos suas reais dimensões. Eu estava entrando no terceiro trimestre de gestação. Natália estava prevista para dali cerca de três meses.
Naquela manhã já se falava sobre uma possível orientação para que os servidores fizessem trabalho remoto. Tudo ainda no campo do zum-zum e da especulação. Havia um clima de insegurança no ar, não somente quanto a trabalhar remoto – pois nunca havíamos feito isso antes -, mas com a pandemia como um todo. A orientação oficial para os servidores ficarem em casa veio oficialmente na segunda-feira, dia 18 de março. Mas eu, por estar grávida, naquele mesmo dia fui orientada a não retornar ao trabalho presencial no dia seguinte, na sexta-feira.
Saí de lá naquela tarde um pouco contrariada e a contragosto, pois gostava de estar no Instituto de Letras. O campus do Vale, apesar de por vezes constituir-se de um verdadeiro labirinto, era um local agradável e que eu gostava de estar. Gostava do clima do campus, da sensação de estar perto da natureza, de conversar com as pessoas, de atender os alunos e até das dificuldades de acesso – como o longo e demorado trajeto de ônibus, que me permitia escutar bons livros no caminho de ida e de volta para casa. Incrivelmente já havia perdido uma carteira, um celular e um guarda-chuva por lá e, em todas as vezes, os recuperei, o que aumentava minha sensação de segurança e de estar em família ao estar lá.
No bar da Letras, no subsolo do prédio de Aulas, acontecia algo que remetia-me a uma cidade do interior ou algo assim. Eu seguidamente pegava emprestado o cartão-alimentação do meu marido Rafa e pagava uma quantia mais elevada para futuros cafés ou almoços. Às vezes colocava 100 ou 200 reais. E o funcionário do caixa ia anotando em um papelzinho a caneta o valor descontado, de forma que toda vez eu levava o mesmo papel lá, eles riscavam e me devolviam com o novo valor. Em suma, era um ambiente baseado na confiança e na boa-fé das pessoas e que sempre dava certo. Além disso, ao ir ao bar tomar um café invariavelmente era encontrada por algum professor, aluno, amigo ou conhecido que acabavam jogando conversa fora ou me fazendo companhia, tornando aqueles minutos de intervalo momentos mágicos e leves de trocas e descontração.
Sai do Instituto de Letras naquela tarde amena de quinta-feira com uma mistura de sentimentos. Aquele local tão familiar, minha segunda casa, agora me mandava abruptamente trabalhar à distância, sem data definida para voltar. Sentia-me estranha, olhei para minha mesa e minha gaveta com tantos objetos pessoais e pensei: Quanto tempo vai demorar isso? Uma, duas, três semanas no máximo? Talvez um mês inteiro, não sei… Conferi mentalmente meus pertences e pensei: não há nada aqui que eu precisarei com urgência e que não possa esperar até esta situação estar resolvida, provavelmente em abril ou, mais tardar, em maio – antes da Natália nascer.
Itens como uma necessaire, um estojo de óculos, um bloquinho, alguns post-its, clipes, canetas com e sem tampa, régua, pasta com folhas soltas, uma bolsinha pequena que colocava chave, celular e cartão na hora de sair para almoçar, um par de meias e uma muda completa de roupas para eventuais banhos de chuva no trajeto, entre outros, representavam a sensação de estar em um local que me abraçava, no qual fui bem acolhida e recebida quando cheguei e, acima de tudo, onde sentia-me feliz.
Não imaginava que os próximos dois anos de trabalho perderiam todo aquele encanto do campus. A vida, o mundo, a rotina, dali para frente seriam drasticamente modificados. O chá de fraldas para Natália, marcado para o dia 28 de março de 2020, não viria a acontecer, entre uma infinidade de eventos, festividades, shows, confraternizações que também foram apagados da história.
Embora não pudessem ocorrer aglomerações, eu e Natália éramos naquele momento um único corpo, muito mais do que aglomerados, éramos interdependentes. Ainda que cada uma se constituísse enquanto um ser individual, meu corpo era sua casa. E sua casa, meu corpo, era tudo o que fazia sentido em minha vida. Era tudo o que eu precisava preservar como um porto-seguro até que ela pudesse crescer e ter o tamanho para habitar o lado de fora da barriga e desbravar este mundo.
Entretanto, que mundo teríamos pela frente? Que mundo seria aquele em meio à pandemia? Que mundo ela habitaria? Natália nasceu em meio a algo que já é descrito nos livros de história como a grande crise sanitária do século XXI. Após tudo que eu imaginava para ela, para seu chá de fraldas, para mim, para os primeiros meses e anos com ela e para nossa família acontecer de forma totalmente diferente, descontrolada e inimaginável, em 2022 retomamos o trabalho presencial no campus do Vale. Natália, já com um ano e meio de idade, iria para a escolinha infantil, onde a princípio poderia brincar, se aglomerar e explorar o mundo ao seu redor.
E aquele campus que me deixou com tantas saudades, agora estava de volta. Eu e meus colegas poderíamos estar juntos novamente. O campus do Vale não estava mais tão cheio, muitos alunos não retornaram, muitos afirmam que preferiram as aulas remotas. Mas a possibilidade de vivenciar a pulsação e a vibração daquele ambiente estavam de volta.
Depois de tanto tempo, o mais incrível é que ao chegar em minha mesa em 2022 encontrei dentro daquela bolsinha para guardar celular e cartão, um daqueles papeizinhos com meu vale-compras no bar. E pasmem, nem eu acreditei, sim, eu ainda tinha valor para pagar três almoços. O funcionário lembrava de mim, do nosso combinado, do meu nome e reconheceu sua própria letra.
A pandemia mudou o mundo, tanta coisa foi transformada – algumas para melhor, outras para pior. Falava-se que a humanidade aprenderia muito com a pandemia, que o ser humano iria evoluir etc, e eu tenho lá minhas dúvidas sobre isso.
Depois de tudo o que passamos, o encanto do campus do Vale, do bar e do Instituto de Letras, estes seguem os mesmos.
Marcamos as pessoas e nem imaginamos… Que linda história!