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Planetário, acessível a deficientes visuais?

Quando se fala em Planetário, alguém pensa em um local acessível para deficientes visuais? O jornalista Marcelo Cavalcanti da Silveira, meu colega no curso de Acessibilidade no Ensino Superior da UFRGS, está contribuindo para a quebra desse paradigma. Ele trabalha no Planetário da UFRGS e, com criatividade, vontade e determinação tenta tornar o local acessível e atraente a cegos e pessoas com baixa visão.

Minha experiência, quando criança, em uma visita com a escola ao Planetário da UFRGS, foi traumática. Todos os alunos sentam numa sala redonda escura para assistir à sessão. Eu não sabia sequer para onde deveria olhar, o que deveria fazer, se havia uma “televisão” em algum ponto ou se as imagens seriam passadas por toda a parte, se eu devia olhar para cima, para baixo, para os lados…

Apenas escutava o áudio da sessão, incomodada e desconfortável, esperando que aquilo terminasse o quanto antes. Não havia ninguém para me explicar e me situar sobre o que estava acontecendo.

Fiquei com a ideia de que esse negócio de céu, planetas, estrelas, constelação “não era para mim”. Mas será mesmo? Hoje, após cerca de 15 anos, vejo que esse ambiente pode vir a ter improtância significativa na minha vida.

Em visita essa semana ao Planetário da UFRGS fiquei impressionada positivamente com a receptividade e, como diria o Felipe Mianes, com o “acolhimento” que senti. Posso dizer que, agora, de fato, entendi e percebi melhor o Planetário.

Entrei, com péssimas lembranças na memória, na mesma sala de projeções que havia estado com a escola. Dessa vez, porém, o Marcelo me explicou que as projeções do céu correm por toda a sala, pelo teto e pelas paredes. Tentei vê-las, mas como é uma sala muito escura e os pontinhos de estrelas, muito pequenos, não foi possível.

Ele foi quem, pela primeira vez, me situou naquele ambiente até então misterioso e estranho. Mostrou-me o aparelho que fica no meio da sala, girando, fazendo barulho e emitindo luzes coloridas. Levou-me até a mesa onde o controlador da sessão dá os comandos. Indicou-me os pontos cardeais dentro da sala redonda e escura, batendo palmas no norte, sul, leste e oeste. Atitudes talvez pequenas para ele, mas imensa para mim.

Talvez você esteja se perguntando, afinal, o que eu de fato vi na sessão do Planetário? Escutei ao áudio de 37 minutos da sessão “O Caminho das Estrelas”, cuja audiodescrição está em fase de finalização pelo Marcelo e a equipe do Planetário.

Está sendo produzido ainda o desenho em relevo das constelações citadas na projetação. Assim, imagens que podem ser visualizadas por muitas pessoas em “O Caminho das Estrelas”, podem ser também tocadas e vistas de outra forma por quem não enxerga o mundo da forma convencional. Um verdadeiro exemplo de respeito e compreensão das diferenças.

Além disso, no hall de entrada do prédio, havia duas exposições. Uma com maquetes táteis das fases da lua. Outra com peças de cerâmica, produzidas pelos alunos do curso do Instituto de Artes da UFRGS. Nem todas as peças podiam ser tocadas, pois algumas estavam dentro de um vidro. Havia legendas em braille, mas nem todas tinham fontes ampliadas para baixa visão.

Essa visita ao Planetário, ainda que eu aponte pontos que precisam ser aprimorados, foi uma experiência emblemática. Na comparação do que percebi há 15 anos, me senti em um local diferente. Não que a instituição atualmente disponha de muitos recursos financeiros e tecnológicos ou que a estrutura física do prédio tenha mudado.

O que temos de diferente hoje é um maior empenho, comprometimento e sensibilidade do homem com seus semelhantes. Uma prova concreta de que é possível fazer muito, mesmo com poucos recursos financeiros e sem as condições ideais que seriam desejáveis.

A comparação entre minha visita de agora e a de 15 anos atrás me mostrou como é possível, com poucos recursos (mas muita vontade e disposição), tornar o local – e todo o Planeta Terra quem sabe – acessível.  Uma mudança de consciência e postura das pessoas ocorre devagar. Mas é bom perceber que, de alguma forma, isso está acontecendo.

Aos poucos a audiodescrição está sendo disseminada. E cabe lembrar aqui que não basta ter a audiodescrição, é preciso, antes de tudo, pessoas dispostas a receber bem o visitante, a acolhê-lo e situá-lo naquele contexto antes de simplesmente colocá-lo para assistir a uma sessão.

Autonomia e liberdade: um sonho possível

Faz pouco tempo que me deparei com a tal da audiodescrição e suas infinitas potencialidades. A cada dia, quanto mais conheço sobre o tema e a cada novo filme assistido, mais fico encantada e envolvida pelas novas possibilidades de lazer e acesso à cultura que se abrem para mim.

É fascinante sentar em frente à televisão sem estar angustiada ou indiferente por não captar os detalhes que só as imagens propiciam, ou ainda, sem incomodar quem está ao meu lado com incessantes perguntas sobre o que está se passando. Sinto-me vibrante e entusiasmada a cada segundo de audiodescrição por finalmente captar o sentido da história – uma sensação única jamais vivenciada em qualquer sala de cinema.

Passei, pela primeira vez, a criar expectativa sobre os filmes, a esperar que seu enredo me agrade, me envolva, tenha um significado na minha vida ou apenas me divirta. Antes, confesso, não esperava nada de um filme. Porque simplesmente não os assistia ou não os acompanhava.

Quando penso na audiodescrição, ainda me parece um sonho. Um universo infinito a ser explorado e desvendado em cada detalhe. Audiodescrição, em outras palavras, significa liberdade, autonomia, igualdade e respeito às diferenças. O acesso à cultura, ao entretenimento e à informação resgata o sentimento de pertencimento e de integração a um contexto, até então, inacessível e distante.

Às vezes tenho medo de acordar desse sonho e descobrir que é mentira. Sei que é real e que está aí. Meu maior receio talvez seja o de que esse recurso não seja disseminado e incorporado às salas comerciais de cinemas, teatros e espetáculos.

Não basta audiodescrição apenas em circuitos alternativos, festivais pontuais, sessões em horários diferentes dos que todo mundo costuma sair e se divertir. Quero assistir a filmes no mesmo horário, no mesmo local que meus amigos assistem. Quero audiodescrição como algo comum e usual em qualquer lugar, em qualquer evento.

Sim, em qualquer evento. Não é apenas no cinema que esse recurso é importante, mas em toda atividade artística, cultural, esportiva ou situação em que as imagens sejam relevantes para compreensão de seu significado e sentido.

Ao ler o texto “A audiodescrição entra na dança”, de Jorge Rein (disponível em http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/issue/view/9/showToc), talvez eu tenha compreendido melhor o alcance desse recurso. Percebi a magnitude, ainda inexplorada por mim, da audiodescrição em diferentes ambientes e situações. Segundo o autor: “A audiodescrição pode ser definida como a tradução de imagens em palavras.  Sua aplicação, neste sentido, é universal. Qualquer produto que ofereça informações visuais é passível de ser audiodescrito e a dança não representa uma exceção”.

Fico satisfeita é saber que muitos coreógrafos, companhias de dança e de teatro já disponibilizam espetáculos audiodescritos. O texto cita exemplos de eventos em diversas partes do Brasil.

O meu sonho, nesse sentido, é estar viva para presenciar o dia em que todos os espetáculos, filmes e eventos tenham audiodescrição. Quero que Jorge Rein possa um dia reescrever esse texto sem precisar apontar os raros locais que viabilizam a audiodescrição no país, mas criticando e apontando especificamente aqueles que ainda não a possuem – constituindo-se eles de exceções, alvo de rechaça e contestação de toda a sociedade. Espero que isso não seja apenas um sonho, mas uma realidade possível e, a cada dia, mais próxima.

O meu lado Mozart

Recentemente assisti a dois filmes com audiodescrição, que me marcaram muito – por motivos diferentes, mas que se relacionam entre si. Assisti a “Tropa de Elite” (um) e “Orquestra dos Meninos”.
O primeiro traz um enredo bastante conhecido pela maioria. Contudo, até então era um enredo desconhecido por mim. Eu já tinha tentado assistir a Tropa de Elite 1 no cinema (quando foi lançado em 2007) e depois em DVD, mas confesso que não tinha entendido o filme. Uma história de ação, com muitos personagens (a maioria do sexo masculino, o que dificulta sua identificação pelas vozes), com cenas escuras e que passam muito rápido. Eis um conjunto de dificuldades para quem tem baixa visão, motivo pelo qual a obra era até então uma incógnita para mim.
É difícil admitir isso (pois o filme foi lançado há muitos anos), mas finalmente, através da audiodescrição, posso dizer que assisti e entendi “Tropa de Elite”. Compreendi o significado, pela primeira vez, da frase “pede pra sair, pede pra sair” – frase que, por muitas vezes, me incomodou e deixou desconfortável por eu não saber seu significado. Foi uma frase recorrente após o lançamento do filme seja em uma roda de amigos, conversa de bar, uma piada na televisão ou em diferentes situações em que as pessoas repetiam isso e eu não entendia.
O segundo filme, baseado e fatos reais, é um drama, que conta a história de um menino pobre que sonha em ser maestro. Mozart Vieira é apaixonado pela música desde criança. Cresce no agreste nordestino, torna-se professor e consegue constituir uma orquestra que reúne 12 meninos pobres do município de São Caetano.
Uma série de acontecimentos, contudo, faz com que esse sonho do maestro seja várias vezes adiado. A trajetória de Mozart é permeada por dificuldades, problemas e até ameaças. O sequestro de uma das crianças do grupo, a ambição de políticos da região (que tentam se aproveitar da orquestra para arrecadar votos) e até a acusação de pedofilia e abuso sexual de menores são algumas das circunstâncias as quais Mozart se depara.
Ainda assim, ele persegue seus ideais. Mozart, sem um espaço para ensaiar com o grupo de alunos, cria a Fundação Música e Vida, que atende atualmente a 200 crianças da região, proporcionando a elas um futuro melhor através da música.
Fiz, a partir de “Tropa de Elite” e “Orquestra dos Meninos”, uma relação com minha própria vida. Às vezes, assim como Mozart, também passo por inúmeros problemas, obstáculos e episódios lamentáveis, que me cansam, desanimam e parecem me tirar as energias.
Às vezes acontecem coisas que me fazem pensar comigo mesma: “Pede pra sair, pede pra sair”. É como se algo dentro de mim quisesse me dizer para desistir – desistir de sonhar e de acreditar em coisas que insistem em dar errado. Acreditar em mundo que insiste em ter tantos problemas, corrupção e bandidagem às vezes parece uma mera ilusão.
São dois lados que lutam e se confrontam dentro de mim. Um diz “pede pra sair, pede pra sair” (como se dissesse: “desista” de tantos sonhos e ideais) e outro relembra o maestro Mozart Vieira e sua perseverança.
Duas faces de como podemos enxergar a realidade. Cabe a mim e a cada um optar por qual delas prefere ver o mundo e a própria vida.
Apesar de não saber música, tenho a convicção de que quero constituir minha própria orquestra – a orquestra da minha vida -, que irá semear, florescer e multiplicar sonhos e conquistas para mim e os outros.
O simples fato de estar assistindo a esses filmes com audiodescrição – o que, aliás, para mim não é nada simples, é um acontecimento incrível – me mostra que é possível sonhar com um futuro melhor e, mais do que isso, perceber mudanças e melhorias já no presente. É possível sonhar, sem ser tola ou ingênua. É possível sonhar e, de fato, alcançar nossos objetivos.
Sonho, entre tantas outras coisas, com o dia em que todos os cinemas do Brasil – em qualquer shopping, em qualquer lugar, em qualquer cidade – terão audiodescrição. Sonho, entre tantas outras coisas, que as pessoas irão se permitir sonhar, acreditar em si mesmas, em seus ideais e realizá-los.

Meu nome não é Johnny; Meu nome é Mariana

Essa semana assisti a meu primeiro filme nacional com audiodescrição: “Meu nome não é Johnny”. A experiência foi fantástica. Sempre pensei que filmes nacionais eram mais acessíveis para mim – e de fato são – porque não tenho que ler as legendas (tentar lê-las) ou compreender o inglês.

Percebi a riqueza de informações adicionais trazidas com a audiodescrição. Tendo baixa visão, tais detalhes realmente teriam escapado à minha percepção. Troca de imagens e ambientes muito rápida, passagem do tempo, situações intercaladas do mesmo personagem quando criança e quando adulto etc. Esses são momentos críticos, essenciais para a compreensão de um filme, em que de fato não consigo acompanhar o enredo.

A sensibilidade do roteirista da audiodescrição Alexandre Leal me chamou muita atenção. Seu senso crítico para perceber exatamente o que é relevante (e o que não é) são fundamentais nesse trabalho. A audiodescrição precisa proporcionar ao espectador a compreensão da obra em sua plenitude e grandiosidade, sem perder sua profundidade.

É um trabalho riquíssimo e que tem ainda a dificuldade de que a voz do audiodescritor pode ser inserida apenas nos momentos em que não há diálogos entre os personagens. Ou seja, não pode haver concorrência entre a voz da a voz dos personagens e do audiodescritor. São nesses preciosos segundos de silêncio na trama em que a audiodescrição é inserida.

Uma das descrições, que pode parecer simples para um espectador sem deficiência visual, me pareceu genial. É o momento em que o audiodescritor afirma: “Sequência de imagens de João vendendo drogas”. Não havia tempo hábil para o detalhamento de cada imagem, mas a ideia fundamental (que era importante para a compreensão da história) foi transmitida ao espectador – que, mesmo sendo uma pessoa com baixa visão, talvez não percebesse seu significado devido à velocidade com que as cenas passam na tela.

A udiodescrição representa um trabalho aguçado de tradução: tradução de imagens em palavras. Mais do que isso, a audiodescrição torna viável ao deficiente visual algo que antes era impossível, algo que era um universo a parte e inacessível – esse fantasioso e inexplorável mundo do cinema e do audiovisual.

“Meu nome não é Johnny” (2008), sob direção de Mauro Lima, conta a trajetória (baseada em fatos reais) de João Guilherme Estrella, um jovem de classe média que se envolve com o tráfico e todas as dificuldades que o mundo das drogas podem trazer. O protagonista (interpretado por Selton Mello) vive um romance conturbado com Sofia (interpretada por Cléo Pires). É preso por tráfico internacional de drogas, acaba internado em um hospital psiquiátrico, mas consegue se recuperar.

Assim como João Guilherme Estrella se recupera das drogas, o filme trouxe, para mim, um significado de recuperação muito grande. Recuperação no sentido de resgatar meu direito e minha vontade de ir ao cinema, conhecer, discutir e repercutir filmes. Recuperei meu desejo de entender sobre cinema, participar e vivenciar suas histórias.

Recuperei, através de “Meu nome não é Johnny”, minha vontade de ser protagonista de uma vida com acesso à cultura do cinema para todos. Digo agora: “Meu nome não é Johnny; Meu nome é Mariana e quero audiodescrição em todos os filmes daqui pra frente.”