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Além do olhar

O olho às vezes me atrapalha. A visão embaraçada muitas vezes me trai. Minha retina desvairada me leva a tropeços constantes em ruas e calçadas esburacadas. Mas a rotina de tombos e tropicões me ensina também a levantar, a re-levantar e encarar a vida de diferentes maneiras.

O que a o olhar não encontra, a sensibilidade alcança.

O que a visão não reconhece, as mãos exploram.

O que o olho tem dúvida, os dedos tem certeza.

O que a retina não processa, o corpo percebe.

O que a visão não confirma, a intuição confere.

O que a visão não vê, o coração prevê.

Mundo-mundo, que tal nos reconhecermos pela essência e não pela aparência?

Os pequenos grandes momentos de 2012

Alguns pequenos, mas grandes momentos merecem ser relembrados no ano de 2012. E gostaria de dividi-los com os amigos e leitores do Blog Três Gotinhas. Não vou falar aqui sobre grandes conquistas, que também ocorreram (como concluir o mestrado, começar num novo trabalho etc), mas sobre os simples acontecimentos do dia a dia. Coisas que poderiam passar despercebidas, mas que faço questão de registrar e valorizar, Coisas que, para mim, não passaram em vão.

Em 2012, além de ter a alegria de ser chamada de professora pela primeira vez (profissão que eu admiro imensamente desde criança), tive a satisfação de receber dos meus alunos O PRIMEIRO CARTÃO EM FONTES AMPLIADAS DA MINHA VIDA.

Ao término do curso de extensão “Educação, Cultura e Acessibilidade” (na Faculdade de Educação da UFRGS) os alunos presentearam eu e o Felipe Mianes (que coordenou o curso comigo) com chocolates e um cartão gigante para cada um. O cartão, em fontes grandes, foi assinado com canetinha hidrocor preta por toda a turma.

Pode parecer algo singelo, mas para mim não foi. Ninguém nunca tinha tido essa ideia de me entregar um cartão tão lindo e personalizado. Sei que foi feito realmente para mim, pois tinha fontes grandes e eu pude ler sem lupa, sem ter que fazer um grande esforço. É maravilhoso me sentir respeitada em minhas individualidades. Às vezes estou tão acostumada a “me adaptar ao mundo” que fico impressionada quando ocorre o contrário (e as minhas necessidades são respeitadas).

Por isso, esse é um cartão cheio de significado para mim. É o símbolo de uma conquista de um mundo com um pouco mais de respeito.. Um cartão que será guardado com carinho por toda a minha vida. Além de uma demonstração de afeto, os alunos mostraram que, mais do que discutir acessibilidade, eles já sabem colocá-la em prática.

Ao digitar essas palavras, com os olhos marejados, lembro como fiquei triste com o último dia de aula. Eu, que sempre fui ansiosa e quis que as coisas terminassem rápido devido à minha falta de paciência, tive o gosto amargo de ter de dizer tchau antes da hora desejada. Eu queria que o curso durasse mais alguns semestres. A riqueza de valores das pessoas, a troca de experiências e o talento de cada um foram gratificantes.

Fico feliz ao ler, após o término das aulas, as palavras calorosas e a demonstração de saudades dos alunos no Facebook e também no blog da Vanessa Dagostim – aluna que organizou a entrega dos cartões. Vale a pena conferir: http://www.vendovozes.com/2012/12/curso-educacao-cultura-e-acessibilidade.html

Ler essas palavras me dá a certeza de que é nessa linha que quero continuar seguindo. Que eu ainda tenho muito a aprender com novas e novas turmas que virão. Uma etapa que foi concluída com o fim do curso, mas que está só começando para além da sala de aula e se estenderá para a vida de cada um. Sei que a turma continuará multiplicando seu conhecimento e respeito à acessibilidade em outros espaço e situações. E isso me deixa feliz e orgulhosa pelo trabalho que realizamos.

Outro fato marcante em 2012 foi o dia em que um garçom de um bar que eu estava com uns amigos me reconheceu em função de uma reportagem que fizeram comigo na TV Assembleia (no programa Faça a Diferença, sobre meu trabalho na TVE). Ele disse que, em função da matéria, não deixava mais nenhuma cadeira no caminho. Passou a se preocupar com as pessoas com deficiência visual, que poderiam cair, se machucar com os obstáculos no caminho ou com as pessoas com dificuldade de locomoção, que também seriam prejudicadas.

Nessa reportagem (http://tresgotinhas.com.br/materia-no-programa-faca-a-diferenca/), minha colega Amanda Carvalho (produtora do Cidadania) falou que, em função de mim, ela passou a se preocupar em tirar as cadeiras da Redação da TVE que ficam no meio do caminho (para que eu não tropeçasse ou esbarrasse nelas). Fiquei imensamente feliz ao perceber que o depoimento da Amanda estava, de alguma forma, gerando uma mudança no comportamento de outra pessoa.

O fato de ter um funcionário preocupado com cadeiras no caminho naquele bar já estava fazendo a diferença na minha vida e na vida de outras pessoas que frequentassem o local. Uma pequena mudança, algo aparentemente banal, mas muito difícil de ser colocado em prática.

Quanto às cadeiras na Redação da TVE, talvez ninguém entenda porque eu esbarro tanto nelas e, ao mesmo tempo, consiga desviar de outros obstáculos aparentemente mais difíceis de serem notados. Mas essas cadeiras são pretas, colocadas sobre um piso preto. Ou seja, não há contraste nenhum com o chão. Elas não se destacam e acabam tornando-se invisíveis para mim. Para quem tem baixa visão essa questão do contraste é importantíssima.

Nesse ano de 2012 tive que conviver e caminhar todos os dias por entre essas cadeiras, desviar de obstáculos o tempo todo. Não podia simplesmente ficar braba e jogá-los no chão ou colocá-los onde eu quisesse, pois sabia que depois as pessoas os colocariam no caminho novamente. Nem tudo é fácil. Os obstáculos estão por toda a parte e todos precisam conviver com eles.

Embora eu defenda a acessibilidade em todos os ambientes, sei que o mundo está longe de ser um local ideal de se viver para qualquer pessoa, independentemente de ter ou não alguma deficiência. Então gostaria de terminar essa “retrospectiva” com um pensamento que remete ao título do Blog. Já que não podemos mudar o mundo todo de uma vez, quem sabe de gotinha em gotinha a gente consiga transformá-lo em um ambiente melhor, com mais amor, paz, respeito e sensibilidade!

E de gotinha em gotinha, o meu esforço está fazendo sentido, não só para mim, mas também na vida de outras pessoas. É por isso que eu agradeço a leitura, os comentários e o apoio de todos que compartilharam momentos bons e ruins comigo no ano de 2012, lendo e contribuído com esse blog. Que em 2013 surjam muitas e muitas histórias felizes para serem narradas aqui.

Um grande abraço com carinho, Mariana Baierle

A audiodescrição precisa dominar o mundo!

Existe algo de extraordinário acontecendo. A audiodescrição (AD) está ganhando força e invadindo novos espaços!

Ainda estou incrédula diante do grupo Tholl que assisti essa semana no Salão de Atos da UFRGS com audiodescrição.

Um espetáculo circense (http://www.grupotholl.com) – com acrobacias, dança, jogo de luzes, malabarismos, números com fogo – foi acessível também a pessoas cegas e com baixa visão.

A experiência foi, para mim, uma quebra de paradigmas. Eu já havia deixado de assistir ao Tholl anos atrás quando minha prima Andjara, de Minas Gerais, veio visitar Porto Alegre.

Na época, toda minha família foi ao evento no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Embora tivesse vontade de ir, não fui por saber que se tratava de algo essencialmente visual. O ingresso era caro e eu não iria pagar caro por algo que eu sabia que não iria “aproveitar”.

Sabia que havia muitas informações e elementos visuais para serem apreciados, o que iria dificultar minha compreensão.

Hoje, cerca de quatro anos depois, tenho o prazer de contar que finalmente assisti ao espetáculo, contando com um excelente trabalho de AD. Algo realmente profissional feito pela Letícia Schwartz, da empresa Mil Palavras.

Para o bom trabalho de AD a sensibilidade é essencial. E isso a Letícia tem de sobra. É por isso que o trabalho dela é tão impressionante. Ela conseguiu, ao vivo (assistindo ao espetáculo de dentro da cabine onde se faz a tradução simultânea – mas que prefiro chamar de cabine da AD), passar emoção e vivacidade às cenas que descrevia.

Eu e algumas outras pessoas com deficiência visual pudemos entrar mais cedo no Salão de Atos da UFRGS, conhecer os atores, as fantasias e acessórios usados por eles bem de pertinho. Pudemos tocar as fantasias, enfeites, sapatos, botas, chapéus, perucas usados pelos atores, além de conversar com eles. Me apaixonei pela menininha de sete anos, uma das estrelas do evento.

Pudemos nos sentir situados no ambiente, antes mesmo do espetáculo começar.

Depois, sentados na terceira fila, com fones de ouvido (o mesmo aparelho usado para tradução simultânea de palestras em outro idioma) escutamos à AD feita pela Letícia.

Em que momentos a AD foi importante no Tholl?

Através da AD percebi exatamente quais eram os pontos em que eu teria me perdido. Muitas vezes eu via os personagens no palco e os movimentos que faziam, mas não conseguia ver suas feições e expressões de rosto.

A AD é perfeita também para pessoas com baixa visão, pois preenche justamente as lacunas na minha percepção.

Ao colocar, por exemplo, que a menina faz “expressão de triste” pude entender o sentido da cena. Se eu não soubesse a feição de seu rosto, não teria entendido a cena em sua plenitude.

Quando o personagem principal chama duas pessoas da plateia ao palco e se comunica com elas através de mímicas e gestos a AD também foi essencial.

O ator brinca com o cabelo cheio de trancinhas de um dos homens que subiu ao palco, puxa uma das trancinhas e finge que coloca no próprio cabelo. Nesse momento, o público todo riu. Ao mesmo tempo, a AD narrou o que estava acotnecendo e eu pude rir da cena. Seria algo engraçado que passaria batido, sem que eu pudesse me divertir.

É mágica essa sensação de rir, ao mesmo tempo, sem precisar perguntar sussurrando para pessoa do lado por que as pessoas riram.

Cenas muito escuras igualmente eram complicadas. Houve vários momentos em que a iluminação diminuía e os atores dançavam com tochas de fogo. A AD me “salvou” em vários momentos.

São detalhes que não são somente detalhes. Detalhes que, somados, são a essência da peça. O que seria do espetáculo sem as piadas, as coisas engraçadas, as acrobacias, as danças, a beleza dos atores, das cores, das luzes?

Como poderia uma pessoa com deficiência visual apreciar esse espetáculo? Por que a pessoa com deficiência tem que ficar em casa enquanto todos saem para assistir a um evento tão fantástico?

Um espetáculo essencialmente visual, não pensado para pessoas cegas ou com baixa visão. Contudo, nesse momento, tornou-se acessível a mais pessoas.

O Tholl se atingiu um público jamais pensado como seu público-alvo. Pessoas que, muitas vezes, não são lembradas, mas que querem consumir cultura, sair de casa, rir, se divertir, aproveitar a vida.

Hoje penso que fico triste de não ter compartilhado daquele momento com minha família no Theatro São Pedro. Porém, fico feliz em perceber que essa realidade está mudando.

Na saída do evento, os atores vieram conversar conosco. Eu fiz questão de ressaltar a importância da AD e sugeri que o espetáculo a incorpore em todas as suas apresentações.

Num passo adiante, almejo que esse recurso seja algo comum e rotineiro em todos os lugares. Que eu e outras pessoas com deficiência visual não sejamos “exceções” nesses espaços.

Que a nossa presença chame menos atenção do restante do público (por estarmos ali com fones de ouvido e isso gerar curiosidade nos demais). Que todos saibam do que se trata a AD, conheçam, respeitem e incentivem sua ampliação.

É por isso que brinco (mas estou falando sério), que a audiodescrição precisa dominar o mundo!